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A sombra do eu sobre o objeto




Resumo: O psicanalista Hans Loewald (1988) inverte a famosa frase “a sombra do objeto recai sobre o próprio eu”, com a qual Freud (1917/1996) define a melancolia, dizendo que na sublimação “a sombra do eu recai sobre o objeto”. Com essa inversão, é possível notar aproximações íntimas entre os conceitos de melancolia e de sublimação. Este artigo visa a mostrar como o processo sublimatório, pensado por Freud, está pautado em um modelo identitário de representação, que oblitera significativamente o caráter disruptivo de produções culturais. Diferente desse modelo é aquele proposto em Das Unheimliche (1919/1996). Nessa modalidade de simbolização, o sujeito se defronta com aspectos não identitários e é obrigado a reinventar categorias formais sem recorrer às previamente existentes.

Palavras-chave: melancolia, sublimação, das Unheimliche.


Abstract: The psychoanalyst Hans Loewald (1988) inverts the famous sentence “the shadow of the object falls upon the ego,” through which Freud (1917/1996) defines melancholia, saying that in sublimation “the shadow of the ego falls upon the object.” With such an inversion, we can notice intimate relations between the concepts of melancholia and sublimation. This article aims to demonstrate how the sublimation process, as thought of by Freud, is based on an identity representation model, which significantly obliterates the disruptive nature of cultural works. Different from this model is that proposed in Das Unheimliche (1919/1996). In this mode of symbolization, the subject is faced with non-identity aspects and she/he is obliged to reinvent formal categories without resorting to the previously existing ones.

Keywords: melancholia, sublimation, das Unheimliche.


Se é certo que o método psicanalítico permitiu o acesso a territórios antes inima-gináveis, sendo, por isso, extremamente revolucionário, seu conceito de sublimação deixa dúvidas quanto ao seu caráter subversivo. Não nos esqueçamos que foi querendo compreender a subjetividade de seus pacientes e diminuir os sofrimentos deles que Freud se aventurou por terras virgens e acabou encontrando as causas dos sintomas no mundo ou no Outro. Certos resquícios do processo civilizatório se encontram em um espaço quase insondável da subjetividade e Freud foi hábil ao criar instrumentos para penetrar essa zona. É importante lembrar que o processo civilizatório acontece quando parcelas do eu-ideu infantil ainda não integrado e, portanto, emaranhado ao id – são soterradas, arrancadas ou banidas. Quando se faz referência ao inconsciente, por conseguinte, há uma alusão direta e simultânea a determinado mundo cultural e social, que não acolhe partes específicas da vida anímica do sujeito. Falar desses lugares significa, simultaneamente, denunciar ou reiterar os limites da cultura e da sociedade.


Não é difícil perceber que, ao fazer alusão a esses territórios, estamos alocados em fronteiras imprecisas entre exterior e interior. Diferentes formas de articular a lacuna que se estende entre esses dois campos são descritas por Freud – sintomas psíquicos, sonhos, lapsos, atos falhos ou sublimação. O interesse deste artigo recai sobre este último modelo simbólico, que tem como característica uma reversão de processos psíquicos em obras concretas da cultura.


Grosso modo, a sublimação pode ser definida como uma forma de satisfazer pul-sões sexuais ou agressivas de forma deslocada. Em Três ensaios, Freud (1905/1996) estabelece feições para o conceito de sublimação. Para ele, o processo sublimatório significa redirecionar os objetivos diretos de satisfação da pulsão sexual para finali-dades de alcance cultural. A peculiaridade da sublimação reside no final desta última afirmação. Na metapsicologia freudiana, a sublimação aparece como forma concilia-dora entre os apelos incessantes de satisfação das pulsões e as exigências civilizatórias. Assim, expressões artísticas e culturais seriam manifestações privilegiadas, nas quais as pulsões escoam de forma satisfatória tanto entre as instâncias psíquicas como nos vínculos entre estas e o universo cultural. O conflito psíquico é apaziguado por essa solução de compromisso, diferentemente do que ocorre em relação aos sintomas. Isto é, enquanto estes formam conexões infrutíferas e repetitivas, a sublimação estabelece um laço feliz entre as instâncias psíquicas e o mundo externo.


Outro aspecto a ser considerado aqui é o de que Freud se propôs a conhecer a verdade do inconsciente – realidade psíquica –, mas suas descobertas o conduziram para amplos terrenos socioculturais, que não se restringem ao lado obscuro da mente. Rendendo-se às evidências de suas conquistas teóricas e empíricas no ramo clínico, Freud saltou dos limites solipsistas de um psiquismo encerrado, arriscando ousadas hipóteses em inúmeros ensaios sobre a cultura. E, como ele nos ensinou, a verdade, tanto da esfera inconsciente como da social, localiza-se nos restos ou desvios que esca-pam ou resistem à simbolização, apontando um excesso que ainda demanda trabalho perlaborativo. De maneira mais precisa: se há verdade nos sintomas psíquicos, ela se enuncia nos limites concernentes tanto ao processo subjetivo de simbolização como às modalidades simbólicas da vida social. Se há verdade nos sonhos, esta é despertada pelos restos diurnos aparentemente insignificantes, que mostram um agora ainda não simbolizado, entrelaçado ao recalque. Se há, ainda, verdade nos lapsos, esta emerge nos descaminhos da lógica linguística reinante no consciente e na cultura preponde-rante, no interior da qual o engano é cometido. Não se deve esquecer, ademais, que o recalque remete invariavelmente a questões desprovidas do trabalho simbólico, tanto no plano psíquico como no social.


Nesse contexto em que a verdade emerge fugazmente – como resto ou desvio – daquilo que resiste ao processo de simbolização, cabe perguntar: qual seria o papel da sublimação? Melhor dizendo: onde tal verdade se manifesta pela sublimação? Essa questão se impõe na medida em que o processo sublimatório, pensado por Freud, parece não obedecer à regra que acabamos de explicitar. Ou seja, quando pensa a su-blimação, Freud não aponta restos e desvios nos quais a verdade aflora. Seria a própria arte – resultado paradigmático da sublimação – um resto ou um desvio ampliado em sua máxima potência? De qualquer modo, se para essa hipótese a resposta é afirmativa, ainda remanesce um impasse. Que a obra de arte enuncie a verdade inconsciente do artista é algo que se admite sem muitos problemas desde a invenção da psicanálise. O que persiste como incógnita, aqui, é o modo como criação e apreciação artísticas se estendem para uma verdade que sinaliza excessos ou sobras inerentes à cultura vi-gente, como fazem as manifestações psíquicas anteriormente mencionadas (sintomas, lapsos, sonhos). Ou seria a solução sublimatória isenta de restos por ser a solução de compromisso exemplar entre vida anímica e universo cultural? Nesse sentido, su-blimação e sintoma seriam equiparáveis ou são manifestações totalmente distintas? Ou de forma mais clara: a sublimação traz em seu bojo fragmentos impermeáveis à simbolização, como ocorre com sintomas (acting out), ou ela abarca simbolicamente os conflitos psíquicos e socioculturais com os quais se propõe a trabalhar?


Ao contrário de outros processos de simbolização, considerados menos felizes, defendemos a ideia de que a sublimação assume certo viés conservador. Isso porque, ao pensar o processo sublimatório como aquele que satisfaz as pulsões e, ao mesmo tempo, reafirma os pilares da cultura, obtendo seu reconhecimento, Freud em certo sentido abdica do questionamento desses limites socioculturais, renunciando aos as-pectos materiais que teriam impulsionado todo o processo de criação e permanecendo confinado aos mecanismos intrapsíquicos. Vejamos como isso ocorre.


Hans Loewald (1988) é claro quando diz que, na sublimação, Freud abdica da dualidade pulsional (ego-sexualidade) em favor da unidade e da amplitude do concei-to de libido, procurando restaurar a unidade básica entre sexualidade e espiritualidade. Quando se trata da dualidade referente às pulsões de vida e morte, diz ainda Loewald (1988), o narcisismo reúne a libido objetal e a tendência a voltar ao estado inorgânico na matriz mãe-criança, sempre presente na vida psíquica. Sublimação, nessa visão, envolve uma recriação interna voltada a essa matriz, na qual se torna possível recon-ciliar elementos polarizados. Isso “ocupa uma parte decisiva no domínio da realidade” (LOEWALD, 1988, p. 22) e culmina, na melhor das hipóteses, na celebração. Trata-se de um elemento “maníaco” – luz ofuscante da sombra melancólica – que aparece no processo sublimatório como afirmação da unidade, psiquicamente celebrada. Loewald (1988) enfatiza esse processo reconciliatório da sublimação, presente na teoria freu-diana. Segundo Sigler e Coelho Junior (2009, p. 231), sua visão é de que “não há uma realidade externa já dada, que o sujeito irá descobrir, mas a construção e reconstrução de realidades mais ou menos discriminadas do sujeito, a partir da unicidade narcísica original da criança com a mãe”. Várias realidades compõem tanto ego como mundo externo, jamais vistos de forma apartada. Ambos se desdobram em sucessivos estágios de integração ego-realidade, que emergem de um solo primordial de total indiferen-ciação e fluidez. Essa matriz de caráter “engolfante” (ibid.) persiste no ego em sua tendência à síntese.


Em eu e o isso, é Freud quem claramente sinaliza o caminho monista que será seguido por Loewald (1988) e outros psicanalistas do ego:


A transformação da libido do objeto em libido narcísica, que assim se efetua, obviamente implica um abandono de objetivos sexuais, uma dessexualização – uma espécie de sublima-ção, portanto. Em verdade, surge a questão, que merece consideração cuidadosa, de saber se este não será o caminho universal à sublimação, se toda sublimação não se efetua na mediação do eu, que começa por transformar a libido sexual em narcísica e, depois, talvez, passa a fornecer-lhe outro objetivo. (FREUD, 1923/1996, p. 43)


Em um lugar híbrido entre Eros e Thânatos – o do narcisismo primário – a su-blimação se rende às exigências do id e simultaneamente atende aos ideais do supereu, visando a uma modificação do eu capaz de atender a ambos os “setores” – subversivo e conservador. Nesse arranjo, o eu obtém controle sobre o id, além de aprofundar suas relações com ele ao se sujeitar a algumas de suas exigências. Identificações cum-prem seu papel nesse processo, sendo que “os valores que o eu investiu como seus fins sublimados mais perfeitos reduzem-se às escolhas originais edipianas do isso [id]” (MIJOLLA-MELLOR, 2010, p. 507). A dessexualização do id, contudo, não é inó-cua para a vida anímica e é nela que é possível reconhecer uma aproximação mais clara entre a melancolia e a sublimação: a energia libidinal dessexualizada é obtida da desunião das diferentes pulsões fundidas que se tornam parcialmente livres e móveis, como Eros, ou preservam resquícios intensos da pulsão de morte. Essas sobras da pulsão de morte retornam cruelmente para o eu com severas demandas do ideal, pro-porcionais às limitações impostas pelo eu à sua agressividade em direção ao exterior. “Se seguirmos o raciocínio de Freud”, diz Mijolla-Mellor (ibid.) “poderíamos chegar a pensar que, se a atividade sublimada não for acompanhada de uma dose de agres-sividade suficiente dirigida ao exterior, o eu encontra-se gravemente ameaçado pelos componentes destrutivos retomados pelo ideal do eu”, alinhados a certa “cultura pura da pulsão de morte” que caracteriza os melancólicos.


Há uma contradição no texto de Freud (1923/1996, p. 61) que, em uma parte, afirma que “a libido sublimada ‘reteria a finalidade principal de Eros – a de unir e ligar – na medida em que auxilia no sentido de estabelecer a unidade, ou tendência à unidade, que é particularmente característica do ego’”, e, em outra, algumas linhas abaixo, diz que “dessexualizando ou sublimando a libido do id, o ego está trabalhando em oposição aos objetivos de Eros e colocando-se a serviço de impulsos instintuais opostos”.

A razão dessa contradição é que “o objetivo do eu na sublimação está de acordo com as aspirações de Eros, mas as consequências imprevistas e involuntárias de sua ação também trabalham a serviço da pulsão de morte” (MIJOLLA-MELLOR, 2010, p. 508). Quando esta aparece desligada, sua periculosidade aumenta e o controle do eu sobre o isso se mostra limitado. Como consequência da desfusão pulsional que permi-te o trabalho sublimatório há uma transformação da libido objetal em libido narcísica, o que aciona as pulsões de morte e agressivas. O objeto de tais pulsões se torna o eu, vítima de investidas superegoicas sádicas e cruéis. Implorando pelo amor do supereu – representante da pulsão de morte, derivada do id –, o eu fica como campo de batalha entre Eros e a pulsão de morte. Daí a afirmação de Mijolla-Mellor (ibid.): “traba-lhando contra a libido, ou seja, buscando dessexualizá-la e sublimá-la, o eu expõe-se ao risco de maus-tratos, senão de morte. Por isso, ele precisa prestar assistência a si mesmo, enchendo-se de libido e tornando-se, assim, o representante de Eros”.


Mijolla-Mellor (2010) procura diferenciar a ideia freudiana de idealização do conceito de sublimação. O conceito de idealização aparece em Psicologia das massas e análise do eu (Freud, 1921/1996) como algo que se contrapõe à identificação por três razões: 1) enquanto o eu é empobrecido na idealização, na identificação ele introjeta o objeto e suas qualidades, enriquecendo-se; 2) se a idealização pressupõe um objeto externo superinvestido como tal pelo eu, na identificação a perda do objeto é pressu-posta com seu restabelecimento no eu quando há justamente a identificação com ele; 3) na idealização, o objeto é posto no lugar do ideal de eu, já na identificação o próprio eu é colocado no lugar do objeto e não sua instância ideal.


Para Mijolla-Mellor (2010, p. 502), a “idealização é uma consequência do fracasso da formação do supereu e do ideal de eu na saída do Édipo”. Compelido a se desfazer de sua libido narcísica em favor de objetos existentes na realidade, o eu que tende a idealizar é fruto de um frágil processo de identificação com os primeiros objetos libidinais. Essa debilidade nas identificações aparece sob a forma de impedimento imposto ao eu de expandir para fora de si seu elemento constitutivo mais importante, o ideal do eu. Constituída como apropriação de imagens parentais arcaicas, a identifi-cação se difere da idealização, pois, enquanto aquela integra essas imagens ao eu, esta restitui incansavelmente a situação de abandono da infância, na qual era eternamente dependente de uma autoridade inconstante. Mais claramente: na idealização o que se repete é certa “paralisia nascida da relação entre um ser poderoso e um ser impotente, indefeso” (FREUD, 1921/1980, p. 180) e na identificação há uma introjeção das pri-meiras figuras parentais. Sem ter sido introjetado pela identificação, o ideal do eu não opera sua função crítica superegoica, que regula a consciência moral e suas ampliações de caráter filosófico, ético e perceptivo. Segundo Mijolla-Mellor (2010, p. 502), “a alienação ideológica como abandono ‘sublimado’ (para Freud, ‘dessexualizado’) a uma ideia abstrata depende, portanto, do que foi demonstrado pela análise do crime pas-sional: a idealização fez calar a instância crítica, que é assumida por outro, exterior ao eu”. Trata-se de mecanismo análogo ao da encenação perversa, no qual uma exigência psíquica se mantém ligada à “realidade de uma cena ou de um objeto, em que, para o neurótico, a fantasia da mesma cena seria suficiente” (MIJOLLA-MELLOR, 2010, p. 502).


Comparando idealização com encenação perversa, Mijolla-Mellor (ibid.) considera que a superestimação dos pais é a base do ideal de eu e da idealização, sendo ambos, por seu turno, derivados do eu-ideal. Na sublimação, por outro lado, a relação com mo-mentos de reelaboração identificatória é acionada como ocorre em trabalhos de luto, no humor ou na cura psicanalítica. Para a psicanalista, se o ideal de eu está de acordo com seu objetivo original (segundo Freud, tornar-se como o pai), a atividade do eu é incitada pela busca de resgatar essa imagem identificatória valorizada para o eu.


A distinção entre os conceitos freudianos de sublimação e idealização mostra que também há uma introjeção no processo de idealização, na qual identificações incons-cientes são emprestadas dos objetos do Édipo, sem que o sujeito as tenha elaborado, ao passo que na sublimação o trabalho ocorre sobre o luto do próprio eu ou, mais precisamente, sobre o luto do eu-ideal todo poderoso. Vendo na sublimação um trabalho por meio do qual é possível substituir não só o objeto ideal, como também o eu-ideal, Mijolla-Mellor (ibid., p. 503) considera que a “representação sublimada de si é ligada a um projeto preciso e limitado, no qual a própria busca terá o poder de restituir ao eu a imagem ideal que ele perdeu”. Tal imagem jamais esquecida seria insubstituível em sua totalidade, já que ela retrataria o próprio eu sob sua forma ideal arcaica ou pré--forma mítica. Essas formas representam a indissolubilidade e indiferenciação entre o objeto e o eu.


Nessa visão, a sublimação é uma saída mais interessante do processo de identi-ficação do que seria a idealização, tida como um retrocesso em termos de economia psíquica. De maneira concisa: a primeira reconheceria a falta e seria expressão de uma elaboração do luto, enquanto a segunda reinstauraria o lugar infantil de subordinação ao Outro. Essa distinção estabelecida por Mijolla-Mellor (ibid.) esclarece parte das questões aqui destacadas, mas ainda não responde a alguns problemas apresentados. Nas descrições conceituais metapsicológicas acima, o protagonismo da instância egoica permanece visivelmente destacado, assim como a marca nostálgica do passa-do indissolúvel arcaico. Não obstante seja possível reconhecer na sublimação certos “desafios lançados aos (...) limites” (ibid., p. 504) da realidade, seu processo emana sempre das estruturas intrapsíquicas e reduz quase à irrelevância a materialidade que envolve o processo.


EmEscritores criativos e devaneio, Freud (1908/1996) está intrigado com o segre-do sobre a criação, guardado pelos escritores. Pergunta-se em que fonte eles bebem para alcançar os resultados capazes de mover nossos sentimentos mais íntimos. Como um pêndulo, Freud (ibid.) tende ora para uma visão romântica, na qual o misterioso artista é igualado ao gênio, ora para uma perspectiva que busca desidealizar a ativi-dade de criação artística, que passa a ser igualada às brincadeiras das crianças. Nesse segundo prisma, a ficção literária opera comoSpiel (jogo ou brincadeira) que oferece a oportunidade de representar1 desejos e angústias, sem que suas implicações sejam verdadeiramente sentidas. Nas palavras de Freud (ibid., p. 136):


A linguagem preservou essa relação entre o brincar infantil e a criação poética. Dá [em alemão] o nome de ‘Spiel’ [‘peça’] às formas literárias que são necessariamente ligadas a ob-jetos tangíveis e que podem ser representadas. Fala em ‘Lustspiel’ ou ‘Trauerspiel’ [‘comédia’ e ‘drama’: literalmente, ‘brincadeira prazerosa’ e ‘brincadeira lutuosa’], chamando os que realizam a representação de ‘Schauspieler’ [‘atores’: literalmente, ‘jogadores de espetáculo’]. A irrealidade do mundo imaginativo do escritor tem, porém, consequências importantes para a técnica de sua arte, pois muita coisa que, se fosse real, não causaria prazer, pode proporcioná-lo como jogo de fantasia, e muitos excitamentos que em si são realmente penosos, podem tornar-se uma fonte de prazer para os ouvintes e espectadores na repre-sentação da obra de um escritor.


1. Spielen também é um termo que designa aquilo que os atores fazem sobre o palco


Para Freud (ibid.), o escritor é alguém capaz de trazer fantasias inconfessáveis de forma prazerosa para os leitores, ou seja, ele nos joga ao sabor de nossas próprias fantasias, sem que autoacusações ou sentimentos de vergonha nos perturbem. Superar o sentimento de repulsa do leitor e provocar seu deleite, na opinião de Freud, são os resultados visados pela técnica criativa do escritor. Para obter esse efeito, “o escritor suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na apresen-tação de suas fantasias” (ibid., p. 142).


O que cabe questionar, aqui, é precisamente essa dicotomia entre ficção e realida-de, palavra e ação, símbolo e real admitida por Freud já nos primórdios da psicanálise.


Ela remonta a temas metapsicológicos decisivos, como a distinção entre a teoria do trauma/sedução e a realidade psíquica. Cabe, ainda, perguntar: qual é o estilo con-dizente ou qual é o aspecto estético formal que se alinha com essa distinção psi-canalítica, que tem em um extremo da metapsicologia a teoria da sublimação – a forma mais bem-sucedida de simbolização – e de outro a noção deacting out – ou a impossibilidade de simbolizar? Vale citar outra passagem deEscritores criativos capaz de fornecer mais uma pista sobre o que Freud concebe no plano da simbolização por meio da arte – sublimação. Diz ele:


Nas criações desses escritores um aspecto salienta-se de forma irrefutável: todas possuem um herói, centro do interesse, para quem o autor procura de todas as maneiras possíveis dirigir a nossa simpatia, e que parece estar sob a proteção de uma Providência especial. Se ao fim de um capítulo deixamos o herói ferido, inconsciente e esvaindo-se em sangue, com certeza o encontraremos no próximo cuidadosamente assistido e próximo da recuperação. Se o primeiro volume termina com o naufrágio do herói, no segundo logo o veremos mila-grosamente salvo, sem o que a história não poderia prosseguir. O sentimento de segurança com que acompanhamos o herói através de suas perigosas aventuras é o mesmo com que o herói da vida real atira-se à água para salvar um homem que se afoga, ou se expõe à artilha-ria inimiga para investir contra uma bateria. Este é o genuíno sentimento heroico, expresso por um dos nossos melhores escritores numa frase inimitável. ‘Nada me pode acontecer’! Parece-me que através desse sinal revelador de invulnerabilidade, podemos reconhecer de imediato Sua Majestade o Ego, o herói de todo devaneio e de todas as histórias. (Ibid., p. 139-140)


Subordinados aos ditames egoicos, a obra e seu herói provocam simpatia e garan-tem segurança tanto ao leitor como ao artista. Ambos estão subjugados à ideia prévia do autor, que manipula seus objetos de acordo com suas intenções estabelecidas de antemão. Essa visão freudiana do processo de criação artística é coerente com certos estilos clássicos, distantes de certas produções modernas e contemporâneas. Nestas, o que impera é o processo de criação com todos os percalços que ele acarreta, sendo a clara distinção entre símbolo e ato muito mais tênue e menos segura do que pode indicar a afirmação acima citada.


Seguindo nessa direção crítica ao conceito de sublimação, não é necessário re-meter o leitor aos detalhes da visão de Theodor Adorno (1970/2008) a esse respeito. Salientamos alguns aspectos explicitados pelo filósofo em suaTeoria estética, que po-derão responder os problemas aqui apresentados.


Não se deve esquecer que, para Adorno, a arte autônoma, que nasce no âmago da sociedade burguesa só pode se configurar como antítese desta. Não sendo imediata-mente dedutível de tal sociedade, é comum observar uma suposição generalizada de que ela poderia ser subsumida da teoria psicanalítica da sublimação. O que se infere é algo simples: por meio da teoria freudiana seria possível alcançar o espaço da repre-sentação – inconsciente – que navegaria na contracorrente daquilo que é estabelecido e aceito socialmente. Não obstante a veracidade dessa tese, a crítica adorniana à noção psicanalítica de sublimação continua contundente. Adorno (ibid., p. 19) considera que a psicanálise “é mais proveitosa no campo psicológico do que na estética”. Segundo o filósofo, Freud – e seus contemporâneos – “considera as obras de arte essencialmente como projeções do inconsciente daqueles que as produziram, esquece as categorias formais da hermenêutica dos materiais, transpõe de algum modo o pedantismo de mé-dicos sutis para o objeto mais inadequado: Leonardo ou Baudelaire” (ibid.). Afinadas com o raciocínio clínico, tratam a arte como tratam diagnósticos psicológicos.


Segundo o filósofo, embora afeitas às questões que tangem à sexualidade – o que poderia indicar certa resistência em relação aos valores preponderantes da sociedade burguesa –, o espírito filisteu permanece nessas análises, que se rendem às modas biográficas. Nessas monografias psicanalíticas, diz Adorno (ibid., p. 19), não se admite a “negatividade da experiência” e seu caráter ficcional é, como nos positivistas, extre-mamente valorizado. Adorno (1970/2008) considera que, nas pesquisas psicanalíticas da arte, as obras cumprem função análoga à dos sonhos, existindo, dessa forma, única e exclusivamente em função da esfera psíquica, seja para satisfazer os anseios secretos do artista que as realiza, seja para satisfazer os pequenos caprichos proibidos daqueles que delas desfrutam.


Essa aplicação da psicanálise aos conteúdos e às formas artísticas conduz o pen-samento a fórmulas que pouco dizem sobre as obras de arte. Por isso, Adorno (ibid., p. 19) afirma: “a tese psicanalítica de que, por exemplo, a música seria o meio de defesa de uma paranoia ameaçadora, é talvez muito válida no plano clínico, mas nada diz sobre a categoria e o conteúdo de uma única composição estruturada”. No sistema de signos absolutamente subjetivo, que aponta moções pulsionais também subjetivas, as obras de arte são meras manifestações psíquicas, o que reduz seu caráter material, subtrai sua objetividade, seu caráter crítico e, finalmente, sua ideia de verdade.


Desnecessário demonstrar hoje a evidência da tese adorniana de que as obras de arte não são apenas reflexos das atividades psíquicas do artista. É preciso levar em conta que, entre vários outros materiais, as moções inconscientes também impulsio-nam – de modo algum são os únicos determinantes a fazê-lo – o processo de produção artística. O movimento inconsciente penetra a obra de arte por meio da mediação formal, considerada de modo primordial pela crítica.


Pesquisas sobre psicanálise e estética, como aquelas realizadas por Frayze-Pereira (2010a, p. 38) mostram a face indomável da arte que se relaciona “à dor do inarticulado que, por seu próprio modo de ser, excede toda tentativa de representação”. Lembrando que “o interesse de Freud pela arte relaciona-se à leitura dos significados recalcados e inconscientes”, Frayze-Pereira (2010b) também vê certos limites na teoria freudiana da arte, na qual “o trabalho artístico é entendido como uma atividade de expressão su-blimada de desejos proibidos”. O artista, por sua vez, sublinha, “é concebido como um ser talentoso o bastante para transformar os impulsos primitivos, sexuais e agressivos, em formas simbólicas, isto é, culturais” (ibid.). Por isso, na mesma linha pensada pelo filósofo Theodor Adorno, o psicanalista diz:


Como os sonhos e os jogos de linguagem, o trabalho artístico facilita a expressão, o reco-nhecimento e a elaboração de sentimentos recalcados, tanto para os artistas quanto para os espectadores que, por sua vez, compartilham com os primeiros a mesma insatisfação com as renúncias exigidas pela realidade e, por intermédio da obra, a experiência estética. Assim, o vínculo entre psiquismo e arte pode chegar a ser concebido de um modo tão direto ou imediato que a singularidade da obra é perdida de vista, ao mesmo tempo em que o psi-quismo passa a ser simplesmente ilustrado pela obra. A partir dessa concepção de arte, duas são as perspectivas analíticas possíveis: privilegia-se o conteúdo, isto é, o motivo na pintura, e compreende-se o enquadramento plástico, conforme a função representativa, como um suporte atrás do qual se desenvolve uma cena inacessível; ou, então, busca-se, escondido sob o objeto representado, uma forma supostamente determinante do imaginário do pintor. Entretanto, através dessas análises, corre-se o risco de identificar efeito estético e efeito narcótico. Se a forma estética é uma espécie de véu destinado a subornar as defesas do destinatário, somos obrigados a admitir, paradoxalmente, que o efeito estético é anestésico. E, nesse sentido, no tocante à ordem social, tal visão da arte é conservadora. (Ibid.)


Analogamente, Adorno (1970/2008) considera que, nessa concepção da arte como efeito anestésico, há certo culto ao princípio de realidade: o que não se rende à ele é “fuga”, tornando a adaptação à realidadesummum bonum. Nas mãos da psicanálise freudiana, a arte se torna uma forma isenta de conflitos por devolver o sujeito ao princípio de realidade de maneira mais satisfeita e sem grandes alterações. Entretanto, de acordo com a crítica imperdoável do filósofo alemão, “a realidade oferece muitos outros motivos reais para dela se fugir e mais do que o admite a indignação a respeito da fuga, que é veiculada pela ideologia da harmonia” (ibid., p. 20). É evidente que a imaginação, admitida pela psicanálise, não deixa de ser uma forma de fuga. Ela tem, porém, limites importantes: o artista aparece como aquele capaz de se render livremente à ela, agradando aos demais sujeitos que, de forma sã, estão fincados ao princípio de realidade. Destituída de seu valor efetivo, a arte se torna, então, brin-quedo, deleite, prazer. O artista ocupa um lugar ambíguo, entre aquele que tem a sorte de não se render totalmente aos ditames do real e o azar de jamais poder ser efetivamente levado a sério neste mundo pertencente aos adultos. Sendo vista como simples extensão do artista, a obra é, para a psicanálise freudiana e certos seguidores, a insistência infantil de uma fantasia de onipotência materializada. Míope quanto ao caráter de resistência inerente à arte, esta se desvincula de sua tentativa de construir um mundo material melhor.


Adorno reconhece a sabedoria de Freud por este perceber que as obras não são simples realizações imediatas de desejos. Ainda assim, elas se tornam uma maneira de realização socialmente aceita e produtiva dos investimentos da libido, sendo seu valor crítico rebaixado a quase zero. Transferindo as obras para o plano da imanência psíquica, a teoria freudiana despoja-as da antítese ao não eu. Em outras palavras: mesmo que o inconsciente (não eu) seja admitido nas elaborações psicanalíticas sobre arte, as obras estariam a serviço de exaltá-lo. O que fica relegado ao esquecimento é o olhar para a resistência antitética inerente à obra diante das causas sociais e materiais determinantes do recalque. Limitando-se a enaltecer as expressões do inconsciente, que também fazem parte da obra, a arte, na perspectiva freudiana, assume seu valor adaptativo, dado que é capaz de pacificar harmoniosamente os contrários – aquilo que é admitido social e psiquicamente se harmoniza com aquilo que é recalcado. Esse valor subjetivo, acima de qualquer validade objetiva da arte, acirra sua legitimidade no plano de uma estética hedonista, que recusa a negatividade atinente ao que ultrapassa o existente. É no desejo burguês de que “a arte seja voluptuosa e a vida ascética” (ibid., p. 25) que se tramam os tecidos da sublimação na teoria freudiana.


Voltemos ao clássicoSublimation, de Loewald (1988). Como já exposto, ele ana-lisa o conceito freudiano de sublimação, mostrando como este reconcilia a dualidade psíquica, reunindo o sujeito ao objeto e superando os conflitos anímicos. Um dos aspectos que aprofunda essa característica da ideia freudiana de sublimação é a in-trodução do conceito de narcisismo na teoria da libido e das pulsões. Partindo daí para discutir a sublimação, Loewald (1988) resgata a mudança de ênfase no interior da psicanálise do id para funções, defesas e adaptações egoicas e para uma análise do ego, considerado, então, como base da estrutura e da dinâmica psíquica. Com a ideia de narcisismo primário, apresentada inicialmente por Freud em O mal-estar na civilização (FREUD, 1930[1929]/1996), a teoria da libido e a teoria do ego tornam--se inseparáveis: o ego ganha estofo com a nova diferenciação entre libido narcísica e libido objetal e, correspondentemente, entre identificação e investimentos de objeto. Uma vez feita a distinção entre libido narcísica e libido objetal e revisado o conceito de narcisismo primário, seguem-se outras mudanças teóricas na obra freudiana:


  1. Libido e sexualidade abrangem não somente relações de objeto, mas também a fá-brica coesa de estruturas intrapsíquicas. Ou seja, a libido deixa de referir-se apenas às interações entre sujeito e objeto, passando a incluir relações psíquicas internas.

  2. O narcisismo primário passa a ser identificado primeiramente como “o melhor reservatório de libido” do qual uma parte fluía para fora dos objetos e podia se-cundariamente voltar para o reservatório (narcisismo secundário) e outra parte sempre ficava no reservatório. Freud vacila entre designar esse reservatório ao ego ou designá-lo ao id. Em O mal-estar, Freud (1930 [1929] / 1996) passa a entender o narcisismo primário como aquele estado primeiro onde id-ego e mundo externo não são distinguíveis. Tal visão difere de uma explanação do narcisismo primário dada em o Ego e o Id, onde o conceito significa que “toda libido está originalmente contida no ego e então emana para objetos” (LOEWALD, 1988, p. 17).


De internalizações e externalizações primárias se forma o superego e a escolha objetal erótica (pela relação edípica) modifica o ego, transformando libido objetal em libido narcísica. Isso envolve “dessexualização”, pois o objeto externo é desinvestido e o objetivo da libido migra para traços originários narcísicos, que fazem coincidir exigências externas – ainda que fantasmáticas – e universo interno. É a essa operação que Freud denomina dessexualização, que, para ele, é a própria sublimação. Em suma, a sublimação freudiana, segundo Loewald (ibid.), advém de uma mudança da libido objetal para libido narcísica, sendo o desejo investido a partir de interações intrap-síquicas. Por isso, a internalização pode ser considerada o caminho universal para a sublimação.


Já assinalamos que, na teoria freudiana, esse processo é comparável à defesa me-lancólica, que também internaliza conflitos objetais, estabelecendo relações intrapsí-quicas e fantasmáticas no lugar daquilo que originalmente era depositado no objeto. Por tal razão, uma imagem construída por Loewald (ibid.) é perfeita para mostrar a aproximação entre melancolia e sublimação. Como o melancólico, que engole o objeto ao invés de reconhecer sua falta (morte) e elaborar o luto, o sujeito que sublima também abdica da realidade externa para investir nas ranhuras narcísicas originárias. Daí a famosa assertiva freudiana sobre a melancolia, “a sombra do objeto recai sobre o próprio eu”, ser modificada por Loewald (ibid.), que afirma que na sublimação a som-bra do ego alterado recai sobre objetos e relações objetais. Na sublimação, assim como na melancolia, estamos tratando de operações defensivas contra a perda do objeto.

André Green (1994) também reconhece essa característica da sublimação, salien-tando que, como a melancolia, a “sublimação é um tipo de reconciliação da dicotomia entre sujeito e objeto – uma redenção para essa polarização”, restringindo o conflito e o abismo entre libido objetal e libido narcísica. A sublimação começa com


(...) a saída do círculo edipiano [que] se dá graças à identificação com o rival, a dessexua-lização dos desejos para com o objeto de amor, à inibição da agressividade. O destino das pulsões sofre uma sublimação exigida pelo grupo cultural e novas escolhas de objeto efetuam-se fora do espaço familiar. (Ibid., p. 124)


Segundo Loewald (1988), a importância dada à matriz originária no processo de sublimação está presente em Freud. Para nós, porém, esse é o erro no qual Freud incorre em sua concepção sobre estética. Sendo o objeto englobado pelo ego ou a transfiguração direta de traços narcísicos em objetos de arte, o que Freud consegue no campo estético é, na melhor das hipóteses, uma visão romântica da obra e, na pior delas, uma explicação da obra como fruto direto de conflitos intrapsíquicos.


Dando abrigo ao inconsciente, Freud vê na arte a possibilidade de unir ao não identitário a identidade social e psíquica. Loewald (ibid., p. 1) mostra que em uma carta a Fliess, o conceito de sublimação, atrelado às fantasias, aparece pela primeira vez, “como estruturas protetoras, sublimações de fatos, embelezamentos deles e, ao mesmo tempo, formas de exonerar o próprio eu”.


A sublimação como lugar no qual as fantasias aparecem como estruturas de pro-teção ou ficções protetoras (ibid.) mostra uma dimensão defensiva bem-sucedida da memória evocada, sendo canal para os impulsos, diferentemente de outras defesas, que os retém e acumulam. O caráter defensivo da sublimação, por mais bem-sucedido que seja esse processo, afasta o sujeito da experiência (Erfahung), que seria provenien-te de um processo perlaborativo do trauma.


Das Unheimliche: categoria não identitária de simbolização


Entretanto, o problema em relação à sublimação encontra sua solução na própria obra freudiana com o conceito de das Unheimliche. Por diversas razões que não cabem neste artigo, não consideramos válida a sobreposição dos dois conceitos, frequente-mente realizada por psicanalistas.


Em 1919 – um ano após o fim da Primeira Guerra Mundial –, Freud desenterra o velho texto Das Unheimliche da gaveta para retrabalhá-lo. Durante os terríveis anos de batalha, conseguiu ser altamente produtivo, escrevendo, entre outros, seus artigos sobre metapsicologia. Sabemos o conteúdo daqueles que restaram dentre os destruí-dos. Como se sabe, há uma forte suspeita de que um dos textos queimados abordava a sublimação. Curiosa escolha a de colocar em chamas o artigo sobre o nebuloso con-ceito de sublimação e desengavetar o ensaio Das Unheimliche, logo após os penetráveis acontecimentos da guerra. Esse par de gestos ampara a hipótese de que a experiência vivida por Freud na guerra coloca em xeque os padrões estéticos resultantes do pro-cesso de sublimação.


Não será possível explicitar, aqui, todo o conteúdo inerente ao conceito dedas Unheimliche. Destacarei, antes, o seguinte aspecto: os efeitosunheimlich são análogosaos do primeiro tempo do trauma e desarticulam toda a estrutura egoica previamente estabelecida. Vale lembrar que, desde seuprojeto, Freud (1895/1996) delineou o trau-ma em dois tempos: seguindo a ordem cronológica, o segundo tempo de uma nar-rativa ocorre antes e refere-se às marcas do recalque originário, enquanto o primeiro tempo ocorrenachträglich ouaprès-coup (só-depois), sendo capaz de ressuscitar essas inscrições primitivas. Em sua tentativa de rastrear a matéria temporal que impregna a estrutura psíquica, Freud se deu conta de que as impressões mnemônicas só podem ser concebidas no interior de uma ordem temporal após o golpe ou o primeiro tempo, que inaugura a dimensão histórica do aparato psíquico. Para que haja história subjetiva, umantes edepois, capaz de romper ocontinuum ininterrupto da repetição compulsiva, é necessário que haja o golpe. Ele é a condição de possiblidade para que haja reorga-nização psíquica. Em outras palavras, sem a incidência do primeiro tempo do trauma não existe a temporalidade como representação.


Diante da estranheza, o aparelho psíquico opera de forma análoga ao que ocorre no trauma, sendo obrigado a criar categorias que abarquem a materialidade que inva-de desde o exterior. Isto é, o curto-circuito provocado pelo efeito unheimlich ressuscita inscrições psíquicas primitivas que se mantinham apagadas e exige uma rearticulação das categorias formais psíquicas e sociais para abarcá-lo. O que se pode dizer é que antes da Primeira Guerra Mundial o processo sublimatório era preponderante como forma de simbolizar a vida e o mundo, o que se tornou insustentável após as atroci-dades da guerra. Sublimar implica satisfazer pulsões por desvios da meta sexual e, si-multaneamente, encontrar aporte social para a produção e o resultado desse processo. Quando, porém, o contexto no qual a obra é exposta tem feições desprezíveis, não há como manter inalterável essa função de mera aceitação da realidade externa.


Vejamos esse ponto com calma.


Como se sabe, a ideia de “compulsão à repetição”, apresentada no ensaio Das Unheimliche e cujo teor mudará os rumos da psicanálise, trata de uma repetição involuntária, de natureza pulsional, que prepondera no inconsciente, sendo seus fins mais poderosos do que aqueles oriundos do princípio do prazer. Agindo como uma força demoníaca, esse fenômeno é uma pressão cujo fim é a própria origem infantil.


Das Unheimliche seria o encontro aparentemente súbito e casual com conteúdos infantis que tendencialmente buscamos repetir. Ele, como o trauma, é capaz de re--acionar antigas defesas psíquicas ou embaralhar o curso automático das ações e re-presentações humanas, inaugurando a possibilidade de reinvenção de uma história.


Em Além do princípio do prazer, Freud (1920/1996) mostra que o tempo da pulsão é um eterno retorno, orientado pela pulsão de morte e pelo inconsciente atemporal. O automatismo é, nesse sentido, certo afeto pertencente a um impulso emocional re-calcado que age como ansiedade, sendo os traços que emergem de forma assustadora algo reprimido queretorna. Nessa categoria de coisas assustadoras é que se encontra-ria o efeitounheimlich. Como ficou provado na pesquisa etimológica feita por Freud, o estranho não é algo novo ou alheio, sendo antes familiar e há muito estabelecido na mente. O fato de esse conteúdo familiar ter sido submetido ao recalque é o que permite esclarecer a definição de Schelling para oUnheimliche como algo que deveria ter permanecido oculto, mas veio à luz.


Se é verdade que das Unheimliche evoca algo secretamente familiar que estava re-calcado, Freud (ibid.) alerta para um problema a ser ainda resolvido nesse contexto, qual seja: nem tudo aquilo que preenche essa condição de retorno do recalcado ne-cessariamente assume as formas unheimlich. Histórias de fadas são exemplos de que realizações instantâneas de desejos, onipotência do pensamento ou modelos animistas de raciocínio não provocam a sensação de terror ou estranhamento, tal como descritas no fenômeno unheimlich. Mesmo o retorno dos mortos não necessariamente apre-senta-se de forma inquietante ou sinistra. O que justifica que o estranho não invada todas as manifestações de retorno do recalcado seria o fato de que os exemplos com essas características que contradizem a forma de operar própria ao das Unheimlich são tomados da literatura imaginativa ficcional. Para Freud (1919/1996, p. 264), seria ne-cessário distinguir “o estranho que realmente experimentamos e o que simplesmente visualizamos ou sobre o qual lemos”.


Recuperando os mesmos argumentos do textoEscritores criativos e devaneio, Freud (1908/1996) introduz emDas Unheimliche uma distinção entre duas fórmulas esti-lísticas: aquela do escritor que escolhe um cenário de realidade poética, claramente contrastante com aquele do mundo real, colocando o leitor diante de personagens que não causam estranheza. Nesse modelo, o leitor é preparado a aceitar o reino da fantasia apresentada criativamente pelo escritor e não estranha as mais improváveis situações construídas poeticamente pelo artista. Se, no entanto, o escritor pretende se movimentar no interior da realidade comum, ele supostamente acata as condições que operam em tal mundo. Nesse caso, aquilo que provocaria estranheza na realidade também adquire o mesmo teor no reino da ficção e o artista bem pode multiplicar tal efeito com situações raras ou mesmo impossíveis. No interior de tal modelo criativo, o escritor “trai, num certo sentido, a superstição que ostensivamente superamos; ele nos ilude quando promete dar-nos a pura verdade e, no final, excede essa verdade” (FREUD, 1919/1996, p. 267). Daí ser possível afirmar que o fantástico “localiza-se em pleno ambiente real, muitas vezes descrito com grande precisão” e “o mistério se insere no próprio mundo cotidiano – bem ao contrário do que ocorre nos con-tos da carochinha, nos quais as leis da realidade desde logo se encontram suspensas” (ROSENFELD, 1993, p. 31). É por esse motivo que o choque que teríamos tido se o evento tivesse ocorrido em situações factuais é o mesmo vivido na experiência com a leitura das obras fantásticas, como as de E. T. A. Hoffmann. Aqui, é a margem que distingue ficção de realidade que aparece borrada, ultrapassando limites antes tidos como claros. A experiência do estranho embaralha a visão acomodada e deixa qual-quer paisagem real turva.


Afeitas ao susto, as obras inquietantes abdicam da beleza complacente, oferecendo uma versão grotesca da arte, por meio da qual o artista revela seu “descontentamento com a lei e a ordem estabelecidas” (MUNK, 2006, p. 16). Segundo Munk (ibid.), “enquanto manifestação estética ancestral, o grotesco representa por si só um contra-ponto ao princípio de ordem e pureza almejado pela burguesia” do fim do século XIX e início do século XX. Citando Wolfgang Kayser, Munk (ibid., p. 16-17) define ainda mais o alcance do grotesco na arte ao dizer que “nenhum elemento sublime em si, ou grotesco em si, é unido num todo ‘belo’ ou ‘dramático’, pois grotesco é justamente contraste indissolúvel, sinistro, o que-não-devia-existir”. Por isso, essa simultaneidade incompatível traz algo diabólico, que desarticula coordenadas prévias, abrindo um abismo exatamente sob os pés que percorriam caminhos aparentemente seguros.


Artistas e obras alinhados a essa vertente inquietante de criação não fazem con-cessões ao belo e à arte ornamentada e, com isso, impõem-se de forma resistente ao establishment.


Referências


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FREUD, Sigmund (1921). Psicologia das massas e análise do eu. In: . Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 18, p. 77-154.

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