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Ana Paula Oliveira: deleite interrompido e a urgência do real



Embora a história da arte reúna milhares de obras nas quais o tema é a Natureza Morta, Ana Paula Oliveira interpela seus visitantes com animais ainda vivos. O impacto ao encontrar animais em uma sala de exposição ou galeria não é pequeno. Introduzi-los na arte contemporânea, contudo, não é algo que possa ser considerado novo, embora não deixe de surpreender. Desde Beuys com seu coiote até Nuno Ramos com seus burricos, os exemplos são muitos. Em cada uma dessas obras, porém, é preciso perguntar: de que vida se trata? E como ela aparece naquele dado trabalho? De qualquer modo, a opacidade que permeia nossa relação com os bichos é sempre flagrante. O que nos diz os olhos de um peixe? E o canto dos pássaros? Tentamos ler esses sinais atravessados pela linguagem humana, mas a verdade é que somos alheios ao seu código. Algo diferente acontece com as coisas e com as matérias. Sabemos conjugá-las, manipulá-las, separá-las, decompô-las, ainda que, evidentemente, jamais esgotemos todos os seus mistérios.


Na obra Sem título de 2005, Ana Paula Oliveira ata vidro, pedra, e madeira com uma borracha laranja, e esses elementos desconexos ganham tamanha intimidade que acabam por formar uma unidade dificilmente dissociada. Outra obra Sem título do mesmo ano, também tem essa característica: observa-se um vidro que sustenta uma borracha laranja, e uma espécie de cinto de plástico reúne borracha, pedra, e bolas de ferro. Essas matérias e formas, sem qualquer tipo de relação prévia, compõem-se, na obra como um todo indivisível. Partes destituídas de qualquer vínculo tornam-se familiares nas mãos da artista. O mesmo ocorre com as peças expostas na Galeria Virgílio, em 2007. Pedaços de borracha mostram sinuosidade ao se comporem com molduras curvadas de vidro. Há uma continuidade entre o suporte de vidro amarrado por uma suave linha de aço, e os pedaços de plástico azul cheios de curvas e cortes, sustentados por ele. O espanto ocorre quando essas duas obras, junto com Culatra, estão expostas em uma sala repleta de pássaros cantarolando, voando, e pousando entre elas. O primeiro impacto perante essas pequenas presenças perturbadoras convoca a uma reflexão acerca da poesia de seu canto, tão imitado pelos homens. O outro aspecto que tentamos apreender é o vôo: aqueles bichos denunciam o limite de nossa liberdade. Ao vermos esses pássaros rondarem a sala de exposição, temos a sensação de que esses dois aspectos – a musicalidade e a liberdade – foram capturados. O vôo, sinal de liberdade, está cativo, mas sua beleza pode ser finalmente apreendida, olhada, analisada. O canto, por sua vez, ecoa na sala e já não se perde em meio aos sons ensurdecedores da cidade.

Sem título, 2005

Sem título, 2005

Entretanto, esta sensação de sermos inundado pela beleza poética própria dos pássaros começa a ser transformada conforme permanecemos na sala. Aos poucos, um gritante incômodo nos invade e aquelas belezinhas já não são tão inofensivas como aparentavam no início. Afinal de contas, o que elas estão fazendo ali? O que aqueles pequenos animais têm a ver com o restante da exposição? Lembranças macabras são evocadas: imagens do filme Os pássaros (1963) de Hitchcock, cenas de suspense precedidas pelo seu canto, manhãs de dias indesejados anunciadas pelo mesmo som, cadáveres descobertos pelo vôo plano de urubus. Invasores, passam, então, a guardar certa semelhança com os ratos. O desejo passa a ser o de espantá-los. Como podem estar ali em meio a obras de arte? Contudo, nas obras de Ana Paula Oliveira, os pássaros as compõem – ou as decompõem, trazem um elemento estranho às demais partes que a constituem. Não sendo aspecto central da obra, mas permanecendo ali, deslocada do restante, a presença se faz de forma cada vez mais imperativa.

Sem título, 2007

Numa determinada vertente do pensamento psicanalítico, a arte aparece como uma forma de resistência à apreensão conceitual e à repetição fantasmática do sujeito. Tal linha de reflexão delimita-se na questão do estatuto próprio ao objeto estético em sua irredutibilidade. Para Lacan, “aquilo a que nos dá acesso o artista é o lugar do que não se deixa ver” (LACAN apud SAFATLE, 2006, pp. 273-4), isto é, a arte é capaz de nomear o objeto ainda que este resguarde sua opacidade. Este aspecto coincide não com o conceito de sublimação freudiano, mas com o Unheimlichkeit. Trata-se sempre, portanto, de um pensamento que lida com um elemento estrangeiro – estranho – irredutível à fantasmática do sujeito.


Ao escrever sobre o estranho, Freud (1919/ 2009) traz para a cena estética o que é assustador e provoca terror e medo. Na direção oposta dos tratados de estética da época, que se ocupam predominantemente com o belo, o atraente e o sublime, a temática do estranho enfatiza aquilo que nas artes é ignóbil, repulsivo e aflitivo.


O estranho teria conexão com resíduos da atividade mental animista própria da infância. Secretamente familiar, liga-se à onipotência dos pensamentos, à pronta realização dos desejos, e ao retorno dos mortos. Na experiência do estranho, o sujeito defronta-se com o seu desejo e vacila: este carrega certa ambivalência, pois deveria permanecer velado (recalcado), mas emerge inesperadamente do exterior de forma quase irreconhecível, denunciando o vigor dos processos primários rechaçados pelo complexo edípico. Tais processos podem renascer de relações estabelecidas com animais: quando crianças era comum atribuirmos aos bichos sentimentos, raciocínios, e afetos análogos aos nossos. Quando esses animais aparecem em determinadas circunstâncias, o que emerge e revive é exatamente aquilo que habitava o nosso universo psíquico, mas permanecia projetado nessas figuras. Aparentemente a vida adulta nos desvencilhara de tudo isso. Contudo, algumas situações reascendem esses conteúdos enterrados nos porões da vida psíquica.

O estranhamento vivido diante de muitas obras de Ana Paula Oliveira talvez se deva à já mencionada barreira intransponível que envolve esses seres do reino animal, mas também denuncia que fragmentos primitivos de nossa vida anímica ainda vigoram.


No ano 2000, Nuno Ramos realizou um trabalho dentro do projeto Fronteiras, organizado pelo Centro Cultural Itaú. Sob o título Minuano erguem-se cinco blocos de mármore branco com espelhos incrustados no interior de um dos lados da pedra, cavada previamente. A obra permanente situa-se nas proximidades da Barra do Quaraí (RS), município localizado na fronteira do Brasil, Uruguai e Argentina. Enquanto realizava o trabalho, escreveu um diário no qual se encontra um comentário a propósito das vacas que circulavam casualmente em torno de sua obra:


As vacas serão as companheiras de minhas pedras-espelho. Vão se coçar no mármore, sujá-lo com seu pêlo. Vão ver sua imagem num espelho vertical (os horizontais são água). Talvez evoluam a partir disso, tornando-se bípedes, os úberes nas costas (RAMOS, 2002, p. 33).


A observação do artista revela o abismo que há entre vacas e homens – espelho, arte, olhar, caminhar, mármore, imagem, imagem própria. Até mesmo a linguagem tácita que compartilhamos é inapreensível ao reino dos bichos, assim como o mugido ou o ruminar são alheios a nós. Mas esta passagem interessa também por outra razão: a menção ao espelho para falar do efeito que as obras teriam sobre as vacas não parece fortuita. O tema do ‘duplo’ pode ser aqui evocado: para Freud, o ato de reduplicar provém de um estágio mental muito primitivo, já ultrapassado, o que explica sua qualidade de estranheza. Experimentar o ‘duplo’ significa retornar a determinadas fases em que havia uma elevação do sentimento de autoconsideração. Esse amor ilimitado dirigido a si mesmo próprio do narcisismo primário é predominante na vida mental da criança e irradia-se para fora em personificações do eu. Transpor-se para fora sob a forma de um ‘duplo’ é um procedimento psíquico que desaparece após o abandono do narcisismo primário. Enquanto nesta fase, o ‘duplo’ tinha um caráter amistoso, se experimentado num momento posterior se reveste de uma máscara aterrorizante. Isto porque o ‘duplo’ passa simplesmente a nos habitar na forma de um observador e de um crítico do eu, exercendo um papel de censor de todas as parcelas consideradas condenáveis pelo sujeito e que se desdobravam em outros personagens. Dito de outro modo: uma parcela do eu pode ser controlada e tratada como objeto de acordo com as exigências daquilo que foi o narcisismo superado dos primeiros anos. Entretanto, o que passa a ser repudiado pode retornar de forma assombrosa em novas personificações. Viver o ‘duplo’, em suma, é regredir a um período em que o eu não se distinguia claramente do mundo externo e de outras pessoas.


As observações de Nuno Ramos claramente tocam neste último aspecto: atribui às vacas o processo de castração próprio do período de constituição de si, que se dá – como propõe Lacan (1949/ 1998) em seu artigo O estádio do espelho como formador da função do eu – na fase do espelho. A “evolução das vacas” parece corresponder ao processo civilizatório que ocorre principalmente no momento em que os objetos parciais das primeiras experiências de satisfação são mutilados para que o sujeito encarne uma imagem de si próprio. Como se sabe, erguer uma imagem do próprio corpo só é possível após o corpo pulsional pré-especular sofrer uma série de incisões. São esses pedaços que se tornam estrangeiros à imagem do eu, mas paradoxalmente exercem uma força de atração por dizerem respeito ao sujeito. Assim, esse enredo vivido na formação da imagem do eu será o motor de pensamentos que não estejam atrelados à imagem especular narcísica, ou seja, será aquilo que impulsiona o desejo e delineia o objeto que o causa – o objeto a. Tal objeto localiza-se em um ponto de tensão entre o que está dentro e o que está fora do corpo, entre o que é mais próprio e o que é inteiramente estranho ao sujeito, entre o que é atraente – por de certa forma lhe pertencer – e o que é repulsivo – por não ser parte integrante da imagem constitutiva do eu.


Se os animais de Minuano aparecem devido às contingências do espaço, Ana Paula Oliveira os introduz sem, contudo, conjugá-los ou compô-los com o restante da obra. É como se, ao invés de se inserirem e encenarem uma trama específica, esses pássaros representassem assombrações das partes extirpadas do corpo. Lançados sem mais nem menos, encarnam o estranho sem que o enredo que os envolve lhes dê contorno. Despencam do nada e atormentam como espectros flutuantes. Nisto está a potência da arte de Ana Paula Oliveira. Nuno Ramos, ao comentar uma das exposições de Ana Paula Oliveira, define-a muito bem, dizendo: “O trabalho de Ana Paula não junta. Isso é o principal. Ele desconjunta, distrai, absorve, rasga, cai. Mas não junta. O galo de Alvorada (2004) não sabe nada do sabão. Os pássaros de Dos pássaros (2007) não sabem nada da borracha. Uma parte não sabe nada da outra. Há uma distopia pairando, não um contraste. O diferente junta, o disparate junta, o que é oposto junta. Mas o trabalho de Ana Paula não junta, e por isso surpreende tanto.” (RAMOS, 2009)


Este aspecto impossível de conjugar presente na obra de Ana Paula Oliveira aponta para o conceito lacaniano de Real expresso no aforismo “o real é o impossível”. No texto Real, será que isso funciona?, Balmès (2009) caracteriza o impossível, atrelando-o ao que é insuportável, inexeqüível ou irrealizável. O impossível não pode ser transgredido. Trata-se de uma barreira. É como tentar pular sobre a própria sombra – não há como realizar tal tarefa. Ou como tentar compreender e agregar os pássaros de Dos pássaros (2007) aos outros elementos que compõem a exposição de Ana Paula Oliveira. Com eles torna-se impossível compor uma unidade, tão bem sucedida nas outras partes do trabalho.


Para Lacan, o impossível é aquilo que “cessa de se escrever” [...] (BALMÈS, 2009, p. 15) e, neste sentido, o real é sempre um “ainda não” ou um “jamais”. “Ainda não” pôde ser inscrito ou “jamais” poderá sê-lo. Este ponto enseja introduzir outra obra de Ana Paula Oliveira: Ainda não (2009), obra cujo título remete não só ao real, mas também à denominação que Laura Vinci deu à sua instalação Ainda viva (2007) composta por maças em decomposição. Ambas as instalações trazem conteúdos que normalmente integram pinturas clássicas de Natureza Morta, mas o ainda no nome sugere que o impossível está apenas no horizonte, sem ter sido ainda levado a termo. Na instalação de Ana Paula vemos peixes sufocados na água equilibrarem-se em seus recipientes prestes a sofrerem uma explosiva queda. Eles estão no interior de sacos precariamente pendurados em dormentes de 2,80 metros. Para entrar em contato com a obra é preciso percorrê-la, circulando entre os pedaços de madeira inclinados e mirando através da água contida nos recipientes. Neles, as escamas dos peixes cintilam devido à luz que atravessa os sacos e respelha na água. A transparência é uma característica da obra. Os olhos dos peixes, no entanto, ao contrário do restante, não são permeáveis, mas operam como um anteparo.

Ainda não, 2009

Segundo Lacan (1964/ 1998), o próprio olhar é sempre um jogo da luz com a opacidade e na sua dialética com o olho instaura-se um engodo, que pode ser expresso nos seguintes termos: Jamais me olhas lá de onde te vejo e inversamente o que eu olho não é jamais o que quero ver (LACAN, 1964/ 1998, p. 100). Esse desencontro ou essa impenetrabilidade do olhar fica patente quando os nossos olhos se cruzam com os dos peixes. Assim, se os pássaros de Dos pássaros aturdiam pelo vôo e pelo canto, em Ainda não os olhos dos peixes é que nos paralisam. São eles que vasculhamos na água turvada pelo tempo. Na sua consistência espessa, pouco translúcida, aqueles buracos estancam qualquer possibilidade de encontrar significados compreensíveis.


Logo, olhar os peixes evidencia o fato de que a arte não pode ser submetida à cena fantasmática do sujeito, resistindo às fôrmas que previamente foram moldadas no Imaginário. Por isso, o estranhamento angustiante suscitado por estes seres demanda a coragem (SAFATLE, 2006, p. 211) de erguer o olhar e mantê-lo dirigido a algo que não correspondente à figura prévia imaginada pelo espectador. Ao deparar-se com um fracasso da compreensão, o olhar, que visava criar um paralelo entre a obra e a imagem fantasmática desenhada anteriormente, só encontra uma nebulosidade que escancara para o sujeito a encarnação do aspecto inominável de seu desejo.


Em seu Seminário XI, Jacques Lacan dá destaque ao olhar, que está presente na pulsão escópica. Para ele, Freud fica siderado ao notar em tropeços, desfalecimentos ou escorregões da linguagem uma outra cena: o inconsciente. Algo insiste em se realizar em outro plano, que não o da consciência e automaticamente produz efeitos evidentes na vida anímica do sujeito. Este aparece, então, como essencialmente dividido, fragmentado – uma falta-a-ser. Aí se inaugura o sujeito do desejo, sendo este balizado pela falta estruturante. O inconsciente não é, portanto, nem ser, nem não-ser, mas algo de não-realizado, que só pode ser materializado por um significante primordialmente censurado. Assim, na psicanálise lacaniana não há uma totalidade que precede a divisão do sujeito: o um, a inteireza jamais existiram.


É interessante notar que Ana Paula Oliveira parece justamente não ser condescendente com essa antítese que abriga desconfortavelmente o humano. Veste suas obras com elementos de ruptura, marcando a ilusão que uma unidade supostamente atingida poderia fazer crer garantida. No caso dos peixes de Ainda não, o olhar desses animais é o foco que parece denunciar nossa condição faltante num espectro em que vários outros componentes estão simultaneamente presentes. E neste sentido ele seria a irrupção do Real sobre o Imaginário e o Simbólico. Depomos nosso olhar nos diversos fragmentos da obra, mas quando nossos olhos se cruzam com os dos peixes, um sentimento de inquietude se instaura. Como vimos, de acordo com Lacan, a já mencionada divisão do sujeito da psicanálise é determinada por um objeto privilegiado que lhe foi extirpado ou foi alvo de uma automutilação: o objeto a. Este surge, por conseguinte, de uma separação primitiva induzida pela aproximação mesma do real. O olhar pode ocupar o lugar do objeto a, isto é, erige-se no espaço vazio do órgão exilado, tendo valor de símbolo da falta – do falo fazendo falta. Assim, o olhar representa o objeto enquanto ausência. É precisamente este vácuo que não é amenizado nas produções de Ana Paula Oliveira, que convocam os visitantes a uma experiência de descentramento permanente. Os olhos dos peixes não concedem qualquer alento a nossa falta, mas, ao contrário, fazem questão de anunciá-la. Se algumas coisas parecem devolver o nosso olhar, na obra Ainda não os olhos estatelam-se impenetráveis.


A tensão provocada pela antítese presente nos diferentes trabalhos da artista também aparece quando, na mesma exposição em que encontramos Ainda não está a obra Contrapássaro (2009). Enquanto a precariedade e a mutação das matérias marcam Ainda não, em Contrapássaro moldes clássicos ditam a composição feita com equilíbrio, medida, exatidão e harmonia. A leveza dos pássaros é agora substituída por pequenos animais de chumbo que cumprem a função de pesos distribuídos sob medida em placas de borracha recobertas de ferro. Ana Paula explica: “Se eu tiro um deles, todo o equilíbrio se rompe, um quadrado bate no outro” (OLIVEIRA, 2009)

Contrapássaro, 2009

Contrapássaro, 2009

A famosa anedota da resplandecente lata de sardinha que boiava no mar, mirando para o jovem Lacan (1964/1998, pp. 93-4) num barco de pesca, transfigura a tradicional concepção de que a visão emana sempre do sujeito para outra que engendra do objeto, no feixe de luz que ele denomina olhar. A visão que se desprende do sujeito é conhecida desde os tratados de perspectiva do Renascimento. Neles o sujeito é considerado o mestre do objeto, ordenado e focado como uma imagem posicionada para e subordinada a ele, a partir de um ponto de vista geométrico. Porém, Lacan acrescenta, “não sou simplesmente esse sujeito puntiforme localizado no ponto geométrico a partir do ponto em que a perspectiva é compreendia. Não há dúvidas de que no fundo de meus olhos, a figura está pintada. A figura está certamente dentro de meus olhos. Mas eu, eu estou na figura”. (LACAN, 1964/ 1998, p. 95). O sujeito também é mirado pelo objeto, capturado por sua luz, figurado por seu olhar. Em Contrapássaro, o espectador inicialmente ilude-se de seu domínio frente ao equilíbrio preciso oferecido pela obra, mas ao olhar ao redor de toda a instalação é surpreendido por um periquito empalhado, que instalado entre duas placas de vidro o observa. Não podemos deixar de nos remeter à obra Dos pássaros de 2007. Nela, como vimos, os pássaros perturbavam precisamente por estarem à deriva. Em Contrapássaro, ao contrário, eles pareciam completamente domados até que o periquito desconcerta a onipotência do visitante. De novo a sensação é de estranhamento: o que este periquito está fazendo aí?


Nessas obras é preciso não apenas a capacidade de “abrir-se” ao “outro”, ao “estrangeiro”, mas, sobretudo, a capacidade de saída de si, de passar para o estrangeiro ou se transpor (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 170). No abandono do “eu”, conceitos já estabelecidos são anulados ou abandonados, indicando a existência de um oco dentro da própria linguagem.

O ato de se desembaraçar do eu é tema da psicanálise lacaniana. Ao se reconhecer naquilo que é inapreensível pelo conceito ou pelo fantasma, o sujeito é apreendido por meio do que lhe resta quando o eu é despido de sua indumentária.


A arte contemporânea caracteriza-se justamente por não se render aos fantasmas subjetivos, suportando a tensão das obras que negam identidades fixas. A experiência de descentramento e de não-identidade cujo modelo é fornecido pela força disruptiva da arte contemporânea, rompe com os procedimentos atrelados a pensamentos conceituais ou instrumentais, e opera em direção a uma “subjetivação acéfala, uma subjetivação sem sujeito, um osso” (LACAN, 1964/ 1998, p. 167) ou, em outras palavras, o sujeito relaciona-se com aquilo que, no interior de si mesmo, é irredutível aos moldes reflexivos de produção de sentido. Ao contrário do modelo tradicional psicanalítico sobre as artes, que tem na sublimação seu guia de reflexão, trata-se aqui não mais de uma representação que seria capaz de reconciliar exigências pulsionais e sociais, mas antes de manter a negatividade das obras, provocando um movimento de inadequação (SAFATLE, 2006, p. 213) entre objetos empíricos e repetição fantasmática de experiências primeiras de satisfação (SAFATLE, 2006, p. 200).


Diante das obras de Ana Paula Oliveira, o sujeito enfrenta movimentos abruptos de inadequação. Suas instalações destroem projeções narcísicas, esfacelando a integridade imaginária do eu. Sem qualquer espécie de mediação, são jogados elementos que evidenciam a faceta irredutivelmente negativa e opaca do sujeito. Cabe ao espectador deslindar uma compreensão possível de abarcá-la.



Referência bibliográfica


BALMÈS, F. “O Real, será que isso funciona?”, in Do Real, o que se escreve? Escola Letra Freudiana, Rio de Janeiro: 7 Letras, p. 11-28.

FREUD, S. (1919/ 2009) “O inquietante” in Obras Completas vol. 14. São Paulo: Companhia das Letras.

GIOIA, M. (2009) “Artista manipula madeira e pássaros de chumbo”, in Acontece. São Paulo: Folha de São Paulo, 26 de novembro de 2009.

LACAN, J. (1964) O Seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998

________ (1949/ 1998) “O estádio do espelho como formador da função do eu”, in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 96-103.

RAMOS, N. (2002) “Minuano”, in BARTUCCI, G. (org) Psicanálise, Arte e Estéticas de Subjetivação. Rio de Janeiro: Imago, p. 27-68.

SAFATLE, S. (2006) A paixão do negativo: Lacan e a dialética. São Paulo: Unesp

SELIGMANN-SILVA, M. (2005) “Haroldo de Campos: tradução como formação e ‘abandono’ da identidade”, in O local da diferença. São Paulo: Editora 34, p.189-204.

__________ (2005) “Filosofia da tradução – tradução de filosofia: o princípio da intraduzibilidade”, in O local da diferença. São Paulo: Editora 34, p.167-188.





Páginas: 213-224

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