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Bússola dos afetos e outras formas políticas




SAFATLE, Vladimir (2015) O circuito dos afetos. São Paulo: CosacNaify.


A imagem da limusine descrita em Cosmópolis de Don DeLillo, e aludida em O circuito dos afetos, talvez seja o melhor desenho do fito que conduziu Vladimir Safatle em suas investigações. Embora referida para explicar fenômenos de outra natureza, não seria difícil compreendê-la como um quadro às avessas do estilo a que ele se entrega. Afetado pelo caráter urgente dos acontecimentos do mundo, Safatle usa a pena de forma a estilhaçar anteparos protetores. Nem vidros de carros, nem barreiras que preservam intacta a Torre de Marfim são capazes de deter seu pensamento ou transformar sua sofisticada escrita em pretexto para a clausura esotérica.


Sabe-se que o autor penetra em vários âmbitos do debate público. Embora afetadas pelas teias da atualidade, suas ideias não são respostas imediatas, carregadas de emoções panfletárias. A matéria é talhada com fôlego e inteligência, sem que esse processo sublimatório se consuma em sua totalidade e esgote a seiva que o impulsiona. Em O circuito dos afetos, a aventura se desenrola como um prisma dispersivo, cujas cores perfazem diferentes linhas de fuga.


Por cada um desses feixes de luz, e entre eles, o filósofo faz ver que circulam afetos. Caberia por isso perguntar quais afetos refratam também da leitura do livro. Entre outras coisas, O circuito dos afetos é obra que incita à coragem. Mostrando como o medo é um dispositivo que fundamenta o contrato social de viés hobbesiano, a escrita de Safatle é um convite a transpor esse limite, cujos fins últimos estariam ligados à preservação da integralidade do indivíduo[1]. O Estado hobbesiano, representado pelo rei-soberano, promete uma proteção social que dilui o campo dos afetos e atinge um “espaço de relação de não relações”, exigindo a renúncia pulsional para conter a constante ameaça de uma guerra de todos contra todos.


Entretanto, o que está sempre em pauta nesse livro é a falácia de tal construção, que orienta a vida política há séculos. Dentro desses moldes, o Estado transforma os sujeitos em figuras carentes da tutela de um grande e poderoso pai. A questão que Safatle insiste em colocar é: por que o desamparo seria algo a se evitar? Recorrendo aos escritos de Freud, declara de modo incisivo que é do desamparo que derivam a emancipação e a coragem para se apresentar nu diante das possibilidades da vida. Afirmando-o, o sujeito abre-se para os vínculos sociais e coloca-se diante das indeterminações próprias ao desejo.


Se o contrato hobbesiano promete inibir a agressividade como modo de garantir a segurança, Safatle mira sua lupa justamente na pulsão de morte, observando que não é preciso identificar nela apenas figuras de violência e tendências antissociais. A pulsão de morte também perpassa certas experiências produtivas de indeterminação, negatividade e despersonalização; ao se desconsiderá-la por esse viés, paga-se o preço de impedir uma fina percepção sobre a especificidade do mal-estar (Unbehagen) tratado por Freud — aquele que se define por “um sofrimento social maior, relativo não à desregulação das normas sociais, mas à própria normatividade dos processos de individuação e de personalização, tais como desenvolvidos na dinâmica civilizatória ocidental moderna”[2]. Por isso, antes de evitar a todo custo as insidiosas manifestações da pulsão de morte, é preciso reconhecer que é ela a única capaz de dissolver os elos libidinais nos quais prepondera outra forma de destruição, mais silenciosa mas nem por isso menos potente e ardilosa: a manutenção de investimentos libidinais que são, eles mesmos, extremamente mortificantes.


Daí a insistência no desamparo. Ele se torna front de batalha contra horizontes de esperança e medo que sustentam ligações visivelmente nefastas. Esses dois afetos seriam responsáveis pela expansão e pelo aumento significativo da densidade de figuras imaginárias idealizadas do futuro, o que provoca — pela lógica da economia psíquica — um estreitamento das camadas de possibilidades inerentes às contingências do agora. Além disso, o estatuto ontológico concedido ao desamparo se traduz ali como “expressão da inexistência de uma determinação ontológica positiva, normativa de nossa condição de sujeitos”[3]; antítese de um individualismo possessivo, o desamparo orienta o sujeito em direção oposta à da conservação de suas predicações.


No plano político, essas duas modalidades de afeto — desamparo e medo da despossessão — estão espelhadas em formas de poder também antagônicas. Enquanto o indivíduo é aquele cujo gozo está concentrado na submissão melancólica ao grande Outro, o sujeito despossuído, que escreve uma história a partir do que se apresenta na realidade contingente, se desvencilha da ingrata tarefa de reconstituição compulsiva de um passado idealizado ou de um futuro sonhado.


Nesse panorama, no qual a sustentação do poder soberano e do Estado contratual se mostra frágil, a violência ganha densidade e deixa de ser puro mal. Com isso, a própria contraviolência repressiva do soberano também se mostra limitada, e o poder que a justifica aparece finalmente como ilegítimo. Se o medo é sua base afetiva, e a língua construída para equilibrar seus pilares, a da paranoia, o abandono da política como gestão do medo implica apostar não só no desejo, como também nos próprios riscos que ele carrega.


Nesse velho cenário hobbesiano, válido para pensar os modelos que orientam a atualidade, o diagnóstico feito para as democracias liberais é o mais pessimista. Segundo a proposição de Giorgio Agamben em Homo Sacer, fica claro como “o mito do pai primevo funciona como uma espécie de representação mítica do lugar de exceção própria a toda soberania”[4], sendo a crise recente da autoridade patriarcal um pretexto para a ascensão de líderes fascistas com as mais diferentes molduras arcaicas do pai primevo, cuja característica principal é, no mínimo, certa leniência em relação a expressões de ressentimento contra a lei.


Um bode expiatório é acionado para explicar a impossibilidade de o poder concretizar a fantasmática segurança; o elemento isolado torna-se causa imaginária da barreira que impede o alcance deste ideal. Daí advém mais uma vez o medo, agora como expressão de frustrações em relação à aposta de amparo depositada no líder fascista. Eliminar o bode expiatório, “causador” das ameaças que abalam a segurança, exigindo políticas de combate irrestrito a esse elemento, é a lógica fascista enraizada nas sociedades contemporâneas de democracia liberal.


Como, então, a dissolução “das representações de identidade produzida pelo colapso do caráter normativo das identificações paternas poderia não redundar em relações defensivas, mas em afirmações produtivas”?[5]


Ernest Laclau mostra a saída para relações menos distantes entre eu e o ideal de eu, ou entre membros do grupo e seu líder, sem que a hierarquia seja descartada ou redunde em versões totalitárias do poder. O discurso científico, adotado no campo jurídico por figuras como Hans Kelsen, demonstra certa pretensão de purificar a política dos afetos inerentes a ela instituindo um Outro quase inatacável. Safatle caminha na contramão dessa vertente; insiste no desamparo e o Outro, encoberto por máscaras de “neutralidade” jurídica, ou encarnado nas renovadas faces do pai primevo, não garante mais nada.


No lugar da agressividade imaginária, que torna perene o ideal político hobbesiano, Safatle oferece uma mudança estética que nos tornaria sensíveis a dimensões da agressividade capazes de conjurar uma versão cindida da alma. Nesse terreno estético, a figura política de Moisés é notável. Com O homem Moisés e a religião monoteísta, Freud rompe a ilusão que permeia os vínculos entre poder irrestrito do soberano e produção de identidades coletivas, fazendo da política uma corajosa aposta em traços ainda instáveis.


Lembremos que Moisés, pai dos judeus, é nas mãos de Freud um egípcio. Sua estranheza inassimilável desvia identificações narcísicas e faz da incorporação de seus traços uma operação na qual o sujeito nega a si mesmo. O Outro também emerge em sua negatividade e os vínculos que ali se estabelecem despossuem; esse efeito pode ser violentamente rejeitado, porém ressoa em cada um tornando igualmente possível a constituição de novos laços políticos.


Líder da errância, Moisés é figura sobreposta em jogos de duplos inquietantes: o deus da religião de Aton se apõe a Jeová, deus dos judeus, assim como Moisés egípcio se condensa ao Moisés midianita, estranho porta-voz do povo judaico. Essa mescla de tempos e imagens rearticula a culpa melancólica do mito da horda em uma lógica de transformação, na qual a consequência do assassinato paterno é outra religião em que o deus — Yaveh — seria indeterminável.


O prisma temporal de O circuito dos afetos lembra que desde o século XIX política e história são matérias imbricadas, donde a necessidade de refletir acerca da forma dessa temporalidade. Tal aspecto formal do tempo mescla traços quase apagados do passado àqueles que vigoram no presente — como ocorre com as imagens de Moisés. São justaposições espaço-temporais que se impõem no tempo-de-agora — temporalidade hegeliana com tonalidade benjaminiana em que os timbres do passado reverberam na musicalidade do presente. Com a estratégia de Hegel, Safatle perscruta vibrações do passado e abandona a interpretação teleológica dada à obra do filósofo alemão. Ao invés de cadeias causais que concatenam a histórica, o que se tem é a espessura de um presente inconscientemente sobredeterminado. Dar ouvidos a essa composição volumosa na qual ressoa a linguagem espectral do movimento do Espírito equivale a lançar-se nos embalos de uma musicalidade incerta. Mais uma vez, medo e expectativa são afetos condenáveis por congelarem a abertura a essas reverberações interligadas a eventos circunstanciais. Por isso, Safatle concederá uma dignidade ontológica à contingência, esvaziada, segundo ele, tanto pela filosofia de Spinoza como pela de Kant.


Com Marx, por sua vez, tem-se a recuperação do proletariado como figura por excelência da subjetividade política. Também com estatuto ontológico, ele representa a multiplicidade social que tende à emancipação política. Mais: o conceito marxista de proletariado seria aquele a carregar uma marca da des-identidade. Livrando-se da faceta empírica de uma classe de trabalhadores assalariados desprovida de propriedade, o autor encontra no proletariado uma designação para as condições necessárias de toda emergência de sujeitos políticos.


Para Marx, a potência revolucionária se concentra nessa classe, cujo significado etimológico, lembrado por Jacques Rancière, remete à ideia de nomadismo, sem lugar. De sua vitória dependeria a dissolução de um regime de dominação. Na ótica de Safatle, “Marx partilha com Hobbes a compreensão da vida social como uma guerra civil imanente”[6]. O que muda, contudo, é a visão em relação à sociedade: na vertente hobbesiana, esta é pensada como ajuste das condições necessárias para a associação de indivíduos. Em Marx, a guerra não é natural, mas atrelada à distinção de classes estabelecida social e historicamente, e por isso não pode levar à vitória de uma classe sobre outra, mas à destruição do princípio que constitui as classes, a saber, o trabalho e a propriedade como atributos fundamentais dos indivíduos.


Embora para Marx a burguesia seja uma classe revolucionária por ter engendrado um sistema em que “tudo o que é sólido desmancha no ar”, ela é uma classe dominada, uma espécie de agente involuntário da história. Classe que invoca os feitiços por ela criados para torná-los negação da vida entre sujeitos, entre sociedade e natureza, entre o sujeito e si mesmo.


Longe da passagem da propriedade privada à coletiva, a destruição da propriedade é também a destruição do próprio. Por essa razão, a liberdade em Marx pode ser vista como experiência social pós-identitária — luta contra o modelo em que a individualidade é o horizonte final para todo e qualquer processo de reconhecimento social.


Aqui, Safatle não evita o debate com as diferentes teorias do reconhecimento de frankfurtianos, propondo uma saída extremamente lúcida para os impasses apresentados. Um giro arriscado, porém frutífero, é apartar o campo político dos segmentos da cultura e da economia. Safatle, aliás, considera que o nascimento da política deriva justamente de tal separação. É na política, por conseguinte, que se instaura um campo no qual os sujeitos se desidentificam de suas particularidades culturais e psicológicas, abrindo uma seara potente de indeterminação. Estamos a léguas de distância de políticas identitárias, nas quais sujeitos encarnam demandas individuais correspondentes ao desenho da identidade que a eles se adequam.


Disso se extrai que diferenças culturais devem ser objeto de indiferença política. Com essa proposição, o autor não ignora a relevância de medidas de reconhecimento, mas as considera paliativas frente à indiferença política. Política não significa imiscuir-se nas particularidades culturais ou psíquicas; é, sim, esfera de afirmação da igualdade de condições para que tenha lugar aquilo que resiste à predicação.


É necessário não recair aqui em uma compreensão do político como campo de universalidade formadora de direito. Não se trata de considerar a ampliação de direitos universais a grupos desfavorecidos. Nesse caso, teríamos interesses particulares — predicativos dos sujeitos favorecidos — configurados em preceitos jurídicos que deveriam passar a ser agregados a todos os sujeitos. O que Safatle propõe é coisa bem diferente. Reconhecimento antipredicativo implica admitir que algo do sujeito passa ao largo de seus predicados, conservando-se como “potência indeterminada e força de indistinção”[7]. Nesse panorama, exigências de igualdade e liberdade só se cumprirão na medida em que houver uma recusa do modelo burguês jurídico-institucional, no qual o homem é uma figura ligada à universalização dos ideais liberais.


Distantes de ideais pré-fabricados, estamos lançados aos afetos — Eros. Mas mesmo nessa seara do amor, Safatle se empenha na tarefa incansável de escavar terras acumuladas sobre nomes. Um poema de Paul Celan traz a imagem de amantes que escavam e repetem esse gesto bruto, transfigurando impotência em imagem do impossível, tocada por uma língua ainda débil. Do ato de escavar-se e escavar o outro resta uma indeterminação profunda, que retira dos amantes tudo aquilo que os constituía como alguém. Não que disso advenha o amor fusional, no qual não haveria distinção alguma entre corpos e almas; a consequência de se despir de todas as camadas que perfilavam as individualidades é a força da desestabilização da linguagem arregimentada de predicados. Amor como exílio, e não como reconciliação com os objetos sempre dispersos, dos quais jamais conseguimos nos desatar.


Alguns impasses


Depois das críticas ao medo e à esperança, seguimos a leitura alimentados por certo ímpeto de coragem, mas o efeito abrupto de algumas freadas confundem a linha pela qual estávamos sendo conduzidos. Safatle explica que, em sua versão neoliberal, o capitalismo deixa de ser mera internalização de mecanismos repressivos aos moldes do espírito protestante, tal como analisados por Weber, para se tornar potência de indeterminação própria ao caráter polimórfico e disruptivo das pulsões, agora escoadas em dutos de alta produtividade — uma pesquisa sobre a publicidade da década de 90 é prova viva dessas colocações. É nesse ponto que ficamos com a impressão de que seria prudente certa precaução contra audácias pulsionais que se ajustam inadvertidamente aos moldes neoliberais. Um trecho pode ilustrar essa inversão repentina de rota do livro:


Assim, se anteriormente o sentimento de alienação no trabalho estava vinculado à perda da autenticidade na esfera da ação, com as temáticas clássicas da estereotipia inflexível das normatividades e da perda da individualidade, atualmente nos deparamos com a crença de que cabe apenas ao indivíduo a responsabilidade pelo fracasso da tentativa de autoafirmação de sua individualidade no interior do trabalho. Pois o próprio discurso social é constituído a partir da incitação à autoexpressão de si, ao empreendedorismo de si. O que nos faz acreditar que, se tal autoexpressão não se realizou, foi por culpa única e exclusiva da covardia moral do indivíduo, incapaz de afirmar suas múltiplas possibilidades no interior da “sociedade de risco”.[8]


Se o livro convidava a abandonar o medo, aceitar uma inexorável condição de desamparo e medir atos de despossessão como prerrogativa, agora voltamos a nos questionar se tais gestos não são exatamente os mais condizentes com aquilo que requer o sistema capitalista em sua versão neoliberal. Embora seja possível antever os argumentos do autor para distinguir suas ideias dos moldes neoliberais por ele criticados, é inegável que muitos pontos acabam convergindo, e valeria cuidado maior em explicitar diferenças. De qualquer modo, mesmo lançado ao ar, o leitor ganha mais com o impasse do que se o tópico não tivesse sido introduzido.


Uma pista sobre as distinções entre o que o autor efetivamente propõe e suas críticas ao sistema neoliberal se esboça na ideia hegeliana de má-infinitude. Ali, Safatle deixa claro como o resultado de processos instaurados pelos modelos atuais do capitalismo produz um para além — uma promessa — jamais encarnado; isto é, tal para além situa uma incessante inadequação do sujeito em relação às demandas sociais, que o faz provar um eterno gosto amargo do “ainda não” e da impossibilidade de efetivação. Ou seja, enquanto o sujeito despossuído se apresentava ousadamente encarnado, o sujeito desapossado — mais do que despossuído — do capitalismo recente é aquele que está sempre à espera do gozo, gozando de forma masoquista com suas eternas insuficiências.


Menos perdoável é, a meu ver, o lugar concedido pelo autor à categoria de lumpemproletariado. Reiterando a visão de Marx, essa subclasse aparece de maneira desestruturada e anômica favorecendo a reiteração da ordem. Embora os argumentos sejam importantes para concentrar na classe proletária a força transformadora, não parece recomendável, para um autor tão atento às tramas teóricas da psicanálise, simplesmente desconsiderar essa parcela insubordinável presente nas diversas estruturas capitalistas. Somente ela é capaz de dar a dimensão exata dos excessos dos arranjos liberais aos quais o próprio autor faz referência e de denunciar todo o fracasso de um sistema. Nesse sentido, o lupemproletariado não seria um conjunto a ser ignorado no interior de um raciocínio de resistência aos modelos liberais; nem “paródia” de transformação, nem “comédia”, o lupemproletariado seria antes o abismo capaz de fazer rodar a engrenagem.


REFERÊNCIAS


SAFATLE, Vladimir (2015) O circuito dos afetos. São Paulo: CosacNaify.

* Alessandra Affortunati Martins Parente é psicanalista, psicóloga (PUC-SP), bacharel em filosofia (FFLCH-USP) e doutora em Psicologia Social (USP). E-mail: aamparente@gmail.com.


[1] O termo indivíduo carrega um modelo de subjetividade no qual os contornos são estabelecidos pelo conjunto de predicados que define certa identidade.

[2] SAFATLE, Vladimir (2015) O circuito dos afetos. São Paulo: CosacNaify, p. 318.

[3] Ibid., p. 73 (nota de rodapé).

[4] Ibid., p. 103.

[5] Ibid., p. 114.

[6] Ibid., p. 336.

[7] Ibid., p. 358.

[8] SAFATLE, Vladimir (2015) O circuito dos afetos. São Paulo: CosacNaify, p. 273

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