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Fragilidade exposta: sobre os impasses de “E se a porta cair...”




Vocês que vivem seguros

em suas cálidas casas,

vocês que, voltando à noite,

encontram comida quente

e rostos amigos,

pensem bem se isto é um homem

que trabalha no meio do barro,

que não conhece paz,

que luta por um pedaço de pão,

que morre por um sim ou por um não.


(LEVI, 1988, p. 9)



Introdução


Depois de terem montado e encenado peças que mobilizavam os afetos de ódio e medo na política, a Cia de Teatro Acidental dedica-se agora a expor os meandros da culpa. A trilogia Afetos políticos é composta por três longos títulos, o primeiro assinado coletivamente e os outros dois por Artur Kon: E o que fizemos foi ficar lá ou algo assim (2019), O que você realmente está fazendo é esperar o acidente acontecer (2014), e o mais recente, em diálogo com A decisão, de Bertolt Brecht (2004): E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis (2021). Uma aparente imobilidade parece ser o fio a amarrar esses títulos-frase.

Nos experimentos filmados da última peça, o cal aparece de maneira jocosa na abertura dos vídeos. O elemento a compor a cena inaugural de A decisão ganha outra conotação em E se a porta cair... Enquanto em Brecht o cal é efetivamente colocado sobre o corpo exposto do morto, a alusão à substância parece assumir um tom irônico diante de sua conotação metafórica.


Colocar uma “pá de cal” sobre algum assunto indica a tentativa de soterrá-lo ou de esquecê-lo. Entretanto, como ensinou uma vez Freud, quando se prefere enterrar um tópico significa que há algum sentimento moral que o condena junto a uma indisposição para olhá-lo de frente. Ou seja, o recalque é a saída para lidar com alguma espécie de culpa. Contudo, esse mecanismo psíquico de defesa é incapaz de eliminar o conteúdo recalcado. E a culpa em relação ao que devia desaparecer acaba crescendo de maneira deturpada, isto é, sintomática.


Talvez não tenha sido por outra razão que Christoph Nel (1980), discutindo a montagem de Mauser, também inspirada em A decisão, de Brecht, tenha sublinhado a estratégia dramatúrgica de Heiner Müller como um “processo de desenterramento” (Prozess von Ausgrabung). Todavia, basta ler Mauser junto de E se a porta cair... para notar que tirar a pá de cal colocada sobre certos assuntos é uma operação completamente diferente na década de 1970, ainda na DDR alemã, e nos dias atuais, especialmente no Brasil.


Cabe recobrar A decisão, eixo inspirador tanto de Heiner Müller como da Cia de Teatro Acidental para avaliar o que está em jogo hoje. No roteiro de Brecht (2004), logo se lê: “Os quatro agitadores: Alto, temos algo a dizer! Queremos comunicar a morte de um camarada. /O coro de controle: Quem o matou? /Os quatro agitadores: Nós o matamos. Atiramos nele e o jogamos numa mina de cal.” (p. 237). Aqui assistiremos ao processo de defesa do grupo que busca se justificar pelo assassinato do camarada.


Na versão da Cia de Teatro Acidental, o coro admite a culpa logo de saída, mantendo o tom condenatório até o último ato: “Nosso trabalho não foi bem-sucedido”. Ali a revolução tornou-se “uma ideia distante”. Os combatentes, em total desacordo, estão desorganizados. Se é que ainda os haja. Como em Brecht, comunicam uma morte, mas já se declaram autores do crime. Mataram os companheiros. Não que tenham usado armas ou veneno. Não que tenham golpeado suas cabeças. O assassinato se deu ao assistirem sentados à morte de cada um deles.


Vemos que mais do que uma releitura de A decisão, E se a porta cair... é uma imagem especular – e, portanto, invertida – da peça de Brecht. Enquanto na peça brechtiana, escrita entre 1929-30, observa-se o intacto ímpeto revolucionário da esquerda e o dilema ético centrado no instante oportuno de agir – perdido ou não em dogmas do partido –, na peça da Cia de Teatro Acidental há uma franca declaração de fracasso. O ímpeto revolucionário se esvaiu. Assistiremos, então, a uma espera infindável pelo julgamento de uma ação protelada. Entretanto, uma inação jamais consegue ser uma inação – ela fatalmente implica escolha.


É interessante recobrar aqui “a tarefa de assumir o tribunal da revolução” a que se dedica Müller (1987, p. 5) em Mauser. Sim, pois diante do impensado na revolução e do automatismo contra qualquer dúvida (“nenhum outro remédio senão a morte do cético”; MÜLLER, 1987, p. 9), o que se observa em E se a porta cair... é um retorno da dúvida que era inerente aos dramas do Barroco alemão. Todavia, a dúvida não ronda mais a subjetividade titubeante do rei-soberano em sua eterna incerteza sobre a legitimidade de seu poder. E se a porta cair... expõe impasses sem recair em seus meandros subjetivos e sem apelar para convenções que encubram suas motivações.


Talvez a chave para compreender o recalque da atualidade, exposto como tentativa de abster-se de uma decisão em E se a porta cair..., esteja na saborosa história contada por Henry Sobel, transcrita na peça. Nela, o conflito conjugal, comicamente articulado em torno de um falso dilema sobre a escolha do nome da filha, parece não ser verdadeiramente escutado e enfrentado pelo rabino consultado. Entretanto, há uma decisão subliminar tanto do casal, que escolhe aconselhar-se com um rabino – e não com outra figura simbólica da sociedade –, como do rabino, que indica como saída o próprio adiamento do conflito. Ambos velam o interesse maior em preservar um casamento na comunidade judaica como modo de reiterar uma tradição.


Se esse impasse paradoxal da anedota toca o conteúdo mais amplo trazido no enredo da peça, seria um erro não observar formalmente a contradição subjacente na peça – como uma espécie de metalinguagem, a declaração da derrota revolucionária significa aqui pensar também sobre os limites da arte para fins revolucionários. O grupo escolhe insistir na tradição teatral – como o rabino insiste em um casamento já a beira do colapso –, ainda que a insuficiência de seus poderes transformadores esteja inevitavelmente colocada. “Temos muito o que dizer, queremos comunicar. Há que comunicar uma morte, a morte de algo que não necessariamente sabemos o que é”. Essa declaração, feita no início da peça, traz a contradição de todo o roteiro: no mesmo passo em que o grupo mantém vibrante a cena teatral e o enigma que enreda a relação entre palco e plateia, assiste-se à incansável enunciação da morte de algo que lhe seria imanente.


Crítica de fora e crítica imanente


Entre 1929-30 – com o fascismo à espreita, mas sem que tivesse ainda assumido os contornos simbólicos do Terceiro Reich –, Brecht almejava o alcance coletivo e revolucionário de sua arte, ultrapassando os interesses meramente formalistas dos entendidos de plantão. Nas obras contemporâneas é necessário lidar com o fato de que o “limiar do inferno” (LEVI, 1988, p. 27) foi atravessado de maneira irrevogável, destruindo todas as expectativas de emancipação ideologicamente erguidas nos períodos iludidos pelo Iluminismo, inclusive as preservadas pela esquerda, cujo teor revolucionário se manteve intacto. Estamos despidos de ideais revolucionários e o teatro, como diz o grupo durante a peça, não dispõe mais da cortina que antes escondia sua irremediável fragilidade.


Diante disso, ainda está acesa a polêmica questão formulada por Theodor Adorno (1998): “escrever um poema depois de Auschwitz é bárbaro e isto corrói também o conhecimento das razões pelas quais hoje é impossível escrever poemas” (p. 26). Nota-se, de modo ainda mais incontornável, que todos os pilares civilizatórios estão manchados de sangue, como bem formulara Walter Benjamin (2005) em seu conhecido axioma, “nunca há um documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie” (p. 70).


Engana-se, porém, quem supõe que minhas considerações insinuem uma pretensa renúncia da Cia de Teatro Acidental à cultura ou à atividade artística. Mais afiados do que nas outras peças da trilogia, os integrantes da companhia expõem o nó imanente ao lugar que ocupam como atores e produtores de teatro. O que a poética exige de cada artista após o conhecimento dos terrores da escravidão negra, das inúmeras políticas de genocídio, de Auschwitz e de violências que seguiram a lógica dos campos de concentração é que seus pés estejam cada vez mais firmes no chão frio e seco da realidade. Sem dúvida, a Cia de Teatro Acidental está lá de pé. Ainda que seus pés estejam bem fincados no espinhoso solo, não deixam de expor uma imensa desilusão em relação ao verdadeiro impacto dessa escolha. Enxergam a inegável vulnerabilidade no trabalho artístico. Notam a fraqueza de suas ferramentas ante os terrores avassaladores do mundo. Ou seja, o teor de verdade, trazido pela peça, coloca-se enquanto crítica imanente em relação aos próprios poderes transformadores da arte, revelando a precariedade de seus recursos em relação à sua pretensão revolucionária.


Vale dizer que, ao mostrar os limites da própria pretensão revolucionária da arte, a Cia de Teatro Acidental não se iguala àquela espécie de crítica ilusória que supõe ser possível olhar o todo de fora. O viés superior, que mira os impasses da cultura de forma desdenhosa, não é o do grupo. Como mostra Adorno (1998) em Crítica cultural e sociedade, esse modelo crítico exibe uma flagrante contradição: enunciar a insatisfação com a cultura não é um gesto capaz de prescindir dela. Ao pronunciar-se, essa espécie de crítico coloca-se como se estivesse apartado e como se pudesse manter, nesse lugar, uma natureza imaculada. Cada um de seus passos na linguagem, porém, está irremediavelmente sujo da mesma substância que pretende depreciar com suas críticas. Em tal vertente, nota-se o esforço de colocar-se de maneira pura e soberana, mas é essa tentativa que emporcalha ainda mais os gestos críticos. Ora, não é segredo que o intelectual ou o artista corresponde ainda mais fielmente à cultura atacada quando almeja apartar-se dela. Sim, pois o lugar alheio é justamente aquele que a sociedade burguesa reservou à arte e ao pensamento. Seu orgulho cego apenas atesta sua adequação ao que pretende criticar à distância.


Aqui o crítico aproxima-se, em certa medida, do raivoso anti-intelectual fascista. O tom avesso à cultura não é apenas expressão da inveja fascista. Mais precisamente: o fascista não é apenas um ressentido diante de “uma cultura odiada porque o exclui” ou um amargurado “contra aqueles que podem expressar o negativo que ele próprio teve de reprimir” (ADORNO, 1998, p. 10). O elemento que incita ódio também se concentra na percepção fina de que o intelectual ou o artista gesticula a independência que não possui, ou seja, o fascista nota o rabo preso do crítico que se pretende livre pensador. É isso que “enerva os [...] inimigos” (ADORNO, 1998, p. 10). O sadismo destes é incitado pela “fraqueza, astuciosamente disfarçada de força” de certos intelectuais e artistas (ADORNO, 1998, p. 10).

Tenho a impressão de que é justamente essa fraqueza e essa suscetibilidade inerente ao lugar de artistas e intelectuais que finalmente “E se a porta cair...” traz à luz do dia sem disfarces.


Confrontações: Baudelaire, Brecht e Cia de Teatro Acidental


Vejamos com calma esse ponto a partir de uma imagem trazida de Le Spleen de Paris, de Charles Baudelaire (2016). Minha hipótese é de que talvez estejam alocados ali os impasses que afligem à Cia de Teatro Acidental.


“Quer saber por que a odeio hoje?” (BAUDELAIRE, 2016, p. 59). Assim inicia-se a prosa do poeta antes que apresente as cenas que evocaram seu ódio pela amada. Elas se passam em um café resplandecente. O luxo do local era ostentado pelas luzes, pelos espelhos e pela fartura de seus víveres em circulação. Quando o poeta contemplava distraidamente a moça de seus sonhos, a diferença entre eles perfurou seu pequeno narcisismo.


Na calçada, diante do casal, havia um frágil homem maltrapilho que carregava em uma das mãos um menino e no outro braço um bebê. Os seis olhos arregalados admiravam de fora o interior do novo estabelecimento. O olhar do pai observava a beleza em ouro do local, extraída do pobre mundo. Nos olhos do menino, a beleza sedutora constatava que se tratava de uma “casa onde só entra gente que não é como nós” (BAUDELAIRE, 2016, p. 60). Na visão embasbacada do pequeno, havia apenas sinal de ingenuidade. Enternecido e envergonhado por dispor de garrafas e copos maiores do que a própria sede, o poeta voltou-se para a amada, seguro de que encontraria correspondência em seu mal-estar. Ela, contudo, logo declarou: “Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maitre para os tirar daqui?” (BAUDELAIRE, 2016, p. 60).


O que a moça talvez não saiba é que o artista ou o intelectual revolucionário, que circula dentro do salão luxuoso, tampouco pertence ao local. Se ali está é porque fez alguma concessão em relação aos seus ideais utópicos. E, nesse sentido, os fascistas de hoje colocam uma questão que mereceria reflexão de nossa parte, sem que, de maneira afoita, nos precipitássemos em desdizer o Belzebu. Qual a efetividade da boa moral do intelectual ou do artista ante à situação de miséria inexoravelmente exposta? Será que a força do ódio diante da amada não teria mais relação com o fato de que ela ignora a precariedade das condições do poeta para frequentar aquele local? Se dependesse unicamente de sua força de trabalho, o poeta talvez fosse tão alheio ao luxo como as três figuras famintas. Ela continuaria a amá-lo? Se se ergue em defesa da abolição dos privilégios e da diferença de classes, ele compartilha sua herança em nome do comum? Ou usou-a para reiterar o desejo recalcado de liberdade das altas rodas enrustidas? – explico esta pergunta mais adiante. Claro está que a arte deve ser pensada em sua própria cadeia simbólica de linguagem, sem que se coloque em pauta as personas dos artistas. Isso, porém, não invalida de maneira nenhuma esse rol de urgentes questões que inevitavelmente atravessa às cegas cada peça de arte.


É importante frisar que uma obra artística carrega em si a unidade das contradições da sociedade. Nela estão condensados os limites sociais para sua forma de expressão e aquilo que em sua própria configuração ultrapassa tais barreiras. Na solidão da palavra lírica, encontram-se os limites da sociedade individualista atomizada ao mesmo tempo em que a resistência a esse modelo se apresenta por meio dos elos universais estabelecidos em sua forma. Ao expandir e aprofundar a densidade da individuação, o poeta lírico atinge o universal. Se Baudelaire é suscetível aos choques da cidade, ele ainda se conserva atrás das fraturadas vitrines de seu eu lírico inconformado.


Brecht, por sua vez, agarra-se à força de seu teatro épico e de seu método coletivo e pedagógico. A força da palavra está mediada pelas lacunas antitéticas entre atores, plateia e palco. Manifesta-se no desconcertante abismo aberto entre o texto e a atuação viva em uma tribuna. Já a Cia de Teatro Acidental apela para a exibição ostensiva da fragilidade dos recursos disponíveis, o que não significa em absoluto declarar a capitulação do teatro. O método de recuperar textos clássicos da dramaturgia para perfurá-los de dentro, como se estivessem expondo suas vísceras, exige caminhar na corda bamba – o desabamento dos consistentes projetos é sempre uma ameaça e uma possibilidade premente.


Da revolução de esquerda ao lugar de fala


No 2º. depoimento de E se a porta cair..., intitulado A anulação, o grupo traz à baila questões controversas sobre o lugar de fala. “Eu sou uma mulher negra/Eu sou um homem branco/Eu sou uma mulher branca/etc.”. Corresponder ao que o Outro deseja sempre pareceu garantia de obtenção de amor e segurança. Artistas e intelectuais irreverentes não eram incólumes à essa lógica. Aliás, a irreverência parece ter sido, durante muito tempo, a estratégia inconsciente e escusa para alcançar lugares de prestígio. Forjando de maneira cega uma liberdade indomável acabavam por corresponder aos anseios mais íntimos do burguês convicto, que prontamente renunciou à liberdade em nome de sua cômoda segurança e de seu inegociável conforto. Como mencionei anteriormente, artistas e intelectuais faziam isso de modo impensado, detendo-se no lugar apartado destinado à arte e ao pensamento na sociedade burguesa. Sem que fosse possível notar, a máscara que agradava aderiu à face dessas personas da cultura e sobre ela foram depositados ainda mais elementos que a exaltavam: artifícios, maquiagens, movimentos bem calculados. Com ironia, E se a porta cair... mostra que hoje será necessário arrancar tais máscaras. Elas eram apenas aparentemente neutras. Será preciso “dar a cara a tapa”, “aparecer de cara limpa”, “estar nu”. Nenhum pudor será perdoado, dizem de maneira chistosa e simultaneamente aflita. Deve-se exaltar com orgulho a própria nudez. Expô-la todos os dias.


Claro que podemos falar, claro que devemos falar, mas o discurso não importa, importa o lugar de onde falamos, esses corpos nus, o falo, não, tanto faz o que eu falo, não interessa o que é falado, mas o pelado, e mais ainda, o peludo, o melado, tudo o que é pele, o mais profundo é a pele, e sobre ela pode haver até mesmo palavras, nas mais diversas línguas e nos mais incompreensíveis alfabetos, as tatuagens valorizam as fotos, os nudes, que devem ser tirados todos os dias, sem falta, sem fala, nada deve faltar, nosso corpo nu é só abundância.


Assim como a aura irreverente e as obras revolucionárias entraram uma vez no agrado do público que as converteu em ansiada mercadoria, agora saber de onde se fala será a moeda de troca mais almejada. Caberá aos artistas alimentarem desejos de outros modos. Serem consumidos a partir de novas formas. Serem mercadoria com outros invólucros. Oferecerem a outra face, que é a mesma de antes. Ou não?


Henry Sobel e a perfeição de uma performance


Seja como for, prefiro seguir algumas pistas deixadas pela controversa figura de Henry Sobel e alçar à dignidade de Coisa [das Ding] (LACAN, 1988) seu mais frágil e polêmico ato. Lembrando que uma das funções da arte é a de “introduzir o caos na ordem” (ADORNO, 1970, p. 215) seu gesto pode ser interpretado como uma performance bem-sucedida. O rabino, ícone religioso que desmentiu a versão dada pelos militares sobre a morte de Vladimir Herzog, mostrou sua vulnerabilidade em um inquietante escândalo envolvendo o roubo de gravatas. Incialmente, atribuiu o estranho furto aos efeitos de remédios, mas depois assumiu sua responsabilidade pelo gesto, alegando que se tratava de uma falha moral.


Uma psicanalista jamais poderá aceitar o argumento moral sobre um “erro” como o de Sobel. Por isso, caberia perguntar qual é a verdade inerente ao seu ato. Não saberia dizer se havia algum fetiche pessoal em relação às gravatas. Mas isso pouco importa. Apenas sua presença em algum divã seria capaz de explorar o campo psíquico relacionado às gravatas. É certo, porém, que o gesto escandaloso de alguém que resguarda sua estatura pública também tem implicações simbólicas e políticas. Vejo com entusiasmo, confesso, a insubordinação às regras mercantis, ainda mais quando ela ocorre em um dos estados mais visitado por brasileiros nos EUA para fins de consumo. Inserir o caos na “ordem” regida pelo Capital é também perfurar a mentira que faz rodar a engrenagem do dinheiro e das mercadorias. Nada disso parece ser passível de culpa ou dívida.


Sem afagos, agrados, culpa, ou moralismo, artistas e intelectuais deveriam lutar pelo valor inerente à força de seus trabalhos. A burguesia ou o Estado não concede quaisquer favores à classe artística e intelectual – os ganhos e as condições materiais para trabalhar devem ser reivindicados porque a arte e o pensamento movem os campos sociais e econômico como qualquer outra esfera da sociedade. As estratégias da luta insurgente e revolucionária de grande alcance parecem ter se dissolvido, mas o humor e a artimanha em lugar de brutais gravatadas e de cal sobre mortos parecem garantir a graça de certas tradições, inclusive as dramatúrgicas – assumir os atos mais genuínos, até mesmo em sua versão mais suja e ordinária, sem pedir perdão, parece ser o único caminho para processos necessários de desenterramento dos horrores que rodam nossas vidas, ainda regidas pelas mercadorias.


Referências

ADORNO, Theodor W. Crítica cultural e sociedade. In: ______. Prismas: crítica cultural e sociedade. São Paulo: Ática, 1998. p. 7-26.

______. Mínima moralia. Lisboa: Edições 70, 1970. p. 215.

BAUDELAIRE, Charles. Le Spleen de Paris. Disponível em: www.bibebook.com/files/ebook/libre/V2/baudelaire_charles_-_le_spleen_de_paris.pdf. Acesso em: 07 jul. 2022.

BENJAMIN, Walter. As teses sobre o conceito de história. In: LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 33-146.

BRECHT, Bertolt. A decisão. In: ______. Teatro Completo, 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004. p. 233-266.

E SE A PORTA CAIR SEGUIREMOS SENTADOS APENAS MAIS VISÍVEIS. Produção de Cia de Teatro Acidental. Roteiro: Artur Kon. Orientação: Maria Tendlau. Intérpretes: Artur Kon, Chico Lima, Mariana Dias, Mariana Otero e Mariana Zink. Local: Cia de Teatro Acidental, 2021. (15min33seg.). Disponível em: www.teatroacidental.com.br. Acesso em: 07 jul. 2022.

FREUD, Sigmund. (1915). A repressão. In: ______. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras Completas, v. 12). p. 82-98.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

LEVI, Primo. É isto um homem?. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

MÜLLER, Heiner. Quatro textos para o teatro: Mauser, Hamlet-máquina, A Missão, Quarteto. São Paulo: Hucitec, 1987.

NEL, C.; TROLLER, U.; BILABEL et al. Über die Schwierigkeit zu sagen, was die Revolution ist. Der Beginn der Arbeit an Mauser am Schauspiel Köln im Januar 1980. In: STORCH, Wolfgang (org.). Explosion of a Memory Heiner Müller DDR: ein Arbeitsbuch. Berlin: Ed. Hentrich, 1988. p. 122-33.

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