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Freud, Proust e Benjamin: aproximações




A partir da pagina 120.


Resumo: O artigo estabelece uma interlocução entre a arte e a psicanálise, aproximando alguns elementos da obra freudiana com trechos da obra Em busca do tempo perdido de

Marcel Proust. O empréstimo de algumas ideias do filósofo Walter Benjamin acerca da arte e da temporalidade permite desenvolver com mais detalhes a relação entre os fios da trama proustiana e as noções de interpretação, escuta e associação livre compreendidas pela psicanálise. Entrelaçar conceitos da psicanálise com a literatura proustiana possibilita

perceber que o método psicanalítico freudiano aproxima-se do que Proust compreende por rememoração e criação na sua principal obra.


Palavras-chave: Proust, Freud, Benjamin, repetição, tradição, criação e tempo.


Abstract: The article establishes a link between art and psychoanalysis, bringing together some elements from Freud's works and several parts of Proust's novel, In Search of Lost

Time. Some of Walter Benjamin's ideas about art and temporality allow us to develop in detail the relationship between the Proustian threads of thought and the notions of interpretation, awareness and the free association understood by psychoanalysis. By joining concepts of psychoanalysis with Proustian literature we are able to perceive that the Freudian psychoanalytical method is close to what Proust understood as remembrance and creation in his main work.


Key words: Proust, Freud, Benjamin, repetition, tradition, creation and time.


Resumen: El artículo establece una interlocución entre el arte y el psicoanálisis, proximando algunos elementos de la obra freudiana con pasajes de la obra En busca del tiempo perdido de Marcel Proust. El préstamo de algunas ideas del filósofo Walter Benjamin acerca del arte y de la temporalidad permite desarrollar con más detalles la relación entre los hilos de la trama proustiana y las nociones de interpretación, escucha y asociación libre comprendidas por el psicoanálisis. Entrelazar conceptos del psicoanálisis con la literatura proustiana posibilita notar que el método psicoanalítico freudiano se acerca a lo que Proust comprend e por rememoració n y creación en su principal obra.


Palabra s clave: Proust, Freud, Benjamin, repetición, tradición, creación y tiempo.

A complexa interlocução entre arte e psicanálise tem rendido bons frutos em pesquisas mais recentes. No Brasil, o diálogo entre esses/ dois campos expande-se a olhos vistos. Entretanto, é importante lembrar que as produções artísticas inauguraram um lugar de destaque no interior da psicanálise já na obra freudiana. Não é preciso muito esforço para reconhecer a inquestionável e óbvia relevância de Sófocles, mas outros autores, ligados à tradição, representam também um papel fundamental para o pensamento psicanalítico. Goethe, Schelling, Schnitzler, Shakespeare, dentre outros são, sem dúvida, exemplos de referências essenciais na obra de Freud.


Este texto insere-se neste amplo panorama que interliga arte e psicanálise. Além disso, ver-se-á que o empréstimo de algumas idéias de Walter Benjamin a respeito da arte e da temporalidade permite entrelaçar com mais profundidade os fios da trama proustiana com alguns pontos presentes na obra de Freud. Tecer este cruzamento possibilita perceber que o método psicanalítico freudiano aproxima-se do que Proust compreende por rememoração e criação na obra Em busca do tempo perdido.


Aqui uma certa compreensão da arte e da literatura proustiana será alternada com uma análise do método clínico psicanalítico, de modo que ambas iluminem-se reciprocamente. O enfoque será dado à criação e à fruição no âmbito artístico e, na esfera psicanalítica, serão abordadas, por um lado a associação livre do paciente e, por outro, a escuta e a interpretação do analista.


A criação artística será compreendida como possibilidade permanente de evocar a tradição cultural e simultaneamente recusá-la. Assim, a criação envolveria, por assim dizer, o conhecimento de uma tradição e a inovação que se dá a partir dos modelos até então vigentes; isto é, um artista segue a tradição da cultura para transformá-la radicalmente. A arte, portanto, se expressa neste ato criativo, localizado entre o novo e o velho; a sutil expressão de um artista não é mera repetição perfeita e nem uma manifestação solta, descolada e desvinculada do extenso universo cultural.


Nesse sentido, a psicanálise aproxima-se da criação artística na medida em que esse método estende a possibilidade de repetição de uma tradição e sua simultânea inovação a qualquer manifestação humana. A biografia de um sujeito ou até mesmo uma escolha individual é, a um só tempo, repetição de uma história familiar e invenção desta história. Quando vista à luz da psicanálise, torna-se patente a constante tentativa paradoxal que o sujeito faz de retomar sua história, criando-a de um novo modo.


No pensamento tradicionalmente aceito, a repetição e a criação seriam circunscritas em áreas distintas e incompatíveis. No interior do campo da repetição encerrar-se-iam as meras cópias e reproduções e o limite da criatividade seria demarcado por aquilo que é inusitado.

Mas, na análise ou interpretação do funcionamento psíquico ambos os atos, aparentemente contraditórios, com freqüência manifestam-se unidos. Aliás, o homem, tal como é visto pela psicanálise, não pode escapar da condição de repetir seu passado infantil no mesmo passo em que o estilhaça para dar-lhe nova forma. Este movimento deixa marcas numa fronteira que sinaliza a singularidade e, ao mesmo tempo, os traços herdados de uma história.


Por outro lado, ao pensar o sintoma, a psicanálise dá uma certa dimensão da impossibilidade de inovar o velho, mantendo a história em seu lugar de imobilidade e, desta feita, de mera repetição. Ainda que esteja presente no sintoma um meio distinto de reproduzir o passado originário, este processo não é criativo e expansivo em direção ao novo. Trata-se de um modelo cíclico e frustrado que retorna sempre ao ponto do qual partiu, não saindo do lugar.


O entrelaçamento entre a arte, freud e proust


Tal como a psicanálise, a arte evoca uma sensibilidade tridimensional. Na arte este aspecto torna-se mais concretamente evidente quando tratamos de esculturas. Podemos olhá-las a partir de diversos e infinitos ângulos, contornando-as e explorando-as em suas diferentes facetas. Contudo, a tridimensionalidade perceptiva não se restringe às esculturas, podendo ser identificada nas mais distintas formas de expressão e de fruição de obras artísticas. Estas suscitam e solicitam do pensamento desdobramentos para possibilidades que se abrem incessantemente, dependendo do prisma da apreciação ou da criação. O fazer artístico ou a relação que se estabelece com uma obra exige um desprendimento de concepções pré-estabelecidas e a surpresa se instaura em novos pontos diante dos quais o olhar é capturado. De outra parte, essas milhares de partes surpreendentes de uma obra não estão descoladas de seu todo e, neste sentido, o detalhe inusitado tem uma história, isto é, tem uma referência que o antecede e indica a totalidade à qual ele pertence.


O fator tridimensional, que permite uma analogia entre a psicanálise e a arte, aponta para a escuta do analista que concentra seus esforços na compreensão e interpretação das sutilezas de um discurso circular e, ao mesmo tempo, cheio de frescor. Também do outro lado do divã, no qual se estende o paciente, a tridimensionalidade se mostra como uma possibilidade quando pensamos na associação livre. O sujeito que se manifesta por meio de seu discurso monótono e repetitivo pode encontrar novos coloridos e perspectivas para aquela fala que estava grudada em seu modo de ser único e inquestionável. A história já aceita e mastigada encontra outras nuances e ganha brilhos diversos.


Neste sentido é que a interpretação do analista e sua escuta servem como um terceiro ente que se interpõe entre o sujeito e o seu próprio discurso (objeto), recolocando aquele numa posição completamente estranha frente ao seu antigo relato e oferecendo uma nova possibilidade de atribuição de sentido para algo que estava ali inerte e cristalizado.


O psicanalista, na prática de seu oficio, não tem a pretensão de delimitar com precisão um entendimento coerente e linear a respeito do paciente. Aquele escuta imagens e observa sonoridades. No dizer de Cromberg: "uma vida em movimento pede para ser escutada

com os olhos e vista pelos ouvidos" (CROMBERG apud GURFINKEL, 1998, p. 109). Portanto, do analista é exigida uma flexibilidade nada convencional para a busca incessante e permanente que de improviso capta, no discurso figurativo, o movimento da imagem

construída verbalmente. Diante desta ele pode iluminar uma figura central ou um detalhe do fundo que ali se estende. Assim, a escuta pode estar mais aguçada para ouvir com nitidez a própria figura que se destaca na imagem ou concentra-se e afina-se com o fundo que

a contextualiza. Nesta sobreposição, o psicanalista procura identificar o que é repetitivo e também aquilo que é inovador, por quebrar um círculo vicioso. O zoom de uma máquina fotográfica, que permite focar com precisão tanto detalhes geralmente considerados como

periféricos em uma paisagem, como algum aspecto aparentemente mais central no interior de um contexto imagético, pode servir como metáfora para a escuta analítica. O psicanalista movimenta-se tal qual o zoom para compreender o discurso de um paciente. Através

de sua lente refinada, aponta ou interpreta ora para o que se repete em palavras, gestos ou em um determinado modo de ser, ora para aquilo que se manifesta diferentemente no interior daquele desenho enganosamente igual.


Apresentadas as idéias iniciais podemos agora adentrar a literatura de Proust que em seu trabalho mais conhecido identificou a repetição e a inovação como facetas da criação e da fruição de obras artísticas e, além disso, as descreveu como elementos constituintes das experiências humanas. O escritor francês une aos velhos hábitos e costumes uma particularidade criativa e ambos os aspectos, juntos, compõem uma característica individual ou até mesmo social 1. Em relação às artes, a combinação entre velho e novo aparece em muitos momentos de Em busca do tempo perdido 2. Neste trecho, entretanto, o destaque será dado ao que Proust revela sobre o processo criativo de seu escritor predileto da infância e juventude - Bergotte. No volume intitulado À sombra das raparigas em flor, a personagem Marcel, após suas leituras marcadas por profunda admiração, conhece pessoalmente o escritor Bergotte. Inicialmente o jovem sente-se decepcionado diante daquela figura que havia sido imensamente idealizada por ele. Pouco a pouco, no entanto, começa a notar que as palavras do escritor relacionam-se com a alma deste sem, contudo, revelarem o conteúdo dela, o que era feito através da expressão do estilo Bergotte. Enquanto as palavras proferidas pelo escritor tocavam levemente a alma deste, o estilo, captado através da sonoridade, volume, ritmo e melodia, expressava-a com mais precisão e profundidade. O sentido do conteúdo importava pouco para a apreensão do espírito de Bergotte.Dirigindo sua atenção para os componentes que formavam a estrutura da expressão do escritor, Marcel pôde associar seu modo de falar com a sua forma literária. Para Proust, aquilo que recebe o nome de estilo relaciona-se com a forma que se mantém constante e semelhante nas diferentes manifestações e expressões de um artista. A criação, em contrapartida, é a capacidade de gerar e surpreender, ainda que dentro deste modelo peculiar ao artista. Esta visão proustiana fica bastante clara na passagem seguinte:


'[...] o [estilo] Bergotte' era antes de tudo certo elemento precioso e real, oculto no coração das coisas e de onde aquele grande escritor o extraía, graças ao seu gênio[...]. A falar a verdade, ele o fazia sem o querer, pois era Bergotte, e, nesse sentido, cada nova beleza da

sua obra era a pequena parcela de Bergotte oculta numa coisa e que ele dali retirara. Mas embora cada uma dessas belezas estivesse assim aparentada com as outras e fosse reconhecível, permanecia no entanto particular, como a descoberta que a trouxera à luz; nova e portanto diferente do que se chamava o gênero Bergotte, que era uma vaga síntese dos Bergottes, já encontrados e redigidos por ele, mas pelos quais não era dado a nenhum homem sem gênio adivinhar o que Bergotte iria ainda descobrir. É o que se dá com todos os

grandes escritores: a beleza de suas frases é imprevisível, como a de uma mulher que ainda não conhecemos; é criação, porque se aplica a um objeto exterior em que eles pensam - e não a si - e que ainda não expressaram (PROUST, 1999, p.114).


1 Estas inovação e repetição no âmbito social podem ser observadas no interior de cada uma das classes sociais existentes na época em que a obra proustiana foi escrita. No caso da aristocracia, por exemplo, vê-se que esta classe social repete as regras e costumes comuns, mas, simultaneamente, assume características próprias oriundas de uma eterminada família, isto é, há algo que se mantém - classe aristocrata - e algo que é peculiar e inova a tradição. Para mais detalhes sobre o tema que ilustra as variações na classe aristocrática, Cf. Proust, "O caminho de Guermantes" In: PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido (v.. São Paulo: Globo, 1999).


2 Cf., PROUST, Marcel. A sombra das raparigas em flor . In: PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido (v.. São Paulo: Globo, 1999) em que as descrições feitas por Proust a respeito das obras do pintor Elstir ou sobre as experiências como espectador de peças teatrais vividas por Marcel nas quais a estrela principal é Berma são exemplos da combinação entre criação e memória.


A novidade e a criação não se rendem ao velho. Na expressão criativa algo ligado ao próprio gênero é permanentemente transformado em função do momento presente que impõe novos objetos. Então, recorrer ao que estava previamente definido, bem como defrontar-se com a impossibilidade de escapar de um modelo estabelecido significa, paradoxalmente, retificá-lo e, por isso, criá-lo, transformando-o.


Esta idéia aparece também na obra freudiana. No texto Escritores criativos e devaneios, Freud explica o funcionamento psíquico no trabalho criativo:


O trabalho mental vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora no presente que foi capaz de despertar um dos desejos principais do sujeito. Dali, retrocede à lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual esse desejo foi realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a realização do desejo. O que se cria então é um devaneio ou fantasia, que encerra traços de sua origem a partir da ocasião que o provocou e a partir da lembrança. Dessa forma o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une (FREUD, 1996, p.138).


Nesta passagem vemos que Freud considera a atividade psíquica criativa a partir do cruzamento entre o passado infantil, em que a escolha de objeto se deu, isto é, em que o objeto de desejo pôde definir a direção para a qual a libido do sujeito irá se mover, e o

momento presente que apresenta o remoto objeto de desejo sob nova forma.


É importante notar que nesse trecho selecionado do texto, Freud refere-se a um passado em que o desejo foi realizado. Aparentemente não houve qualquer malogro, nas investidas do sujeito em relação ao seu objeto de desejo. Entretanto, não devemos nos esquecer de que na idéia apresentada por Freud está implícita a própria perda do objeto desejado dado que, como vimos, este precisou ser recuperado na fantasia criativa. Perder o objeto de desejo

é também uma frustração que no ato criativo precisou ser retificada. Ademais, a não realização do desejo em um tempo remoto também pode impulsionar o sujeito a reparar sua investida mal sucedida a fim de obter um resultado diferente sob uma nova forma.


Este ponto liga-se intimamente com a literatura proustiana. Ao pormenorizar o modo como o "estilo Bergotte" associa-se com o novo, Proust usa a metalinguagem e indica a maneira como se dá o seu próprio processo criativo: o já existente é o tempo todo restaurado.


Walter Benjamin: tempo na arte e na psicanálise


Nesta altura é fácil acrescentar um novo elemento ao que foi até aqui exposto: a temporalidade. Como foi possível perceber, o tempo subjaz aos percalços da constituição subjetiva. Um modelo antigo de ser remete à história e o novo emerge no instante efêmero que pode subverter toda a ordem previamente herdada.


A análise de Walter Benjamin do tempo, presente no momento da criação artística e da interpretação de uma obra, coincide com o caminho trilhado até aqui. Para o filósofo, ao surgir uma obra de arte ocorreria uma ruptura com o passado capaz de inaugurar uma

paradoxal nova tradição. Neste sentido, podemos vislumbrar uma afinidade entre a psicanálise e a temporalidade no âmbito da arte tal como esta é concebida no prefácio da obra Origem do drama barroco alemão.


De acordo com Benjamin, a criação de uma obra de arte rompe com o passado mas, por isso mesmo, não pode deixar de estar vinculada a ele. Segundo ele, há uma temporalidade específica à criação de uma obra artística que se revela em um caráter "intensivo". A intensidade pressupõe que algo forte - intenso - se concentra, se expande e brota num curto período do tempo. A expressão artística irrompe, perturbando a linha evolutiva e contínua do tempo. Esta cadeia ininterrupta dos diferentes momentos caracteriza o aspecto "extensivo" da temporalidade evolutiva-biológica, normalmente adotada para laborar com a história da arte que tem em seu registro os preceitos da causalidade típicos do modelo científico da modernidade. Para Benjamin: "O elo essencial das obras de arte entre si se dá de modo intensivo [...] A historicidade específica das obras de arte [...] não se descobre em uma história da arte, mas somente em uma interpretação. Uma interpretação [...] faz jorrar conexões que são atemporais, sem serem por isso desprovidas de importância

histórica" (BENJAMIN apud MURICY, 1999, p. 195). Para captar a complexidade revolucionária de uma obra temos de fazer movimentos isolados de imersão em seus multifacetados sentidos. São esses mergulhos profundos e plenos de sentido que nos remetem à tradição e permitem compreender os elos da história que ligam a

obra com o universo cultural. Em outras palavras, é importante interpretar a singularidade da obra, buscando seu sentido para que a tradição artística que se desdobrou anteriormente àquela expressão particular possa ser também revelada. O ato de embrenhar-se em uma obra exige aprofundamento e, por conseguinte, é possível distinguir esse modo de aproximação com as artes de outros meios possíveis de fazê-lo, tal como conectar ou estabelecer uma ordem linear e contínua entre elas.


Em suma, o caráter intensivo da temporalidade presente tanto na criação como na interpretação de uma obra de arte exige daquele que a aprecia ou a produz um movimento de imersão que coincide com aquilo que ocorre na clínica psicanalítica e na elaboração da escrita proustiana.


O paciente que se submete ao processo psicanalítico relata sua história, tentando recompor suas diversas experiências em uma determinada ordem plena de significados já anteriormente atribuídos. Isto pode demonstrar que o paciente está geralmente preso à

concatenação de sentidos já pensados e dados aos fatos de sua vida. Ele fala e mostra ao analista a forma através da qual sempre significou o desenrolar de suas experiências. Mas a interpretação de um aspecto pontual de seu relato pode re-inverter o velho sentido intrincado em sua história, interrompendo o caráter repetitivo de significações e abrindo possibilidades para que novos sentidos sejam concedidos ao que surge no presente. Aqui o caráter temporal benjaminiano une-se à idea da tridimensionalidade já exposta: a

imagem construída no discurso de um paciente, anteriormente chapada num sentido único referente ao passado, ganha outras dimensões perante as quais ele se vê obrigado a improvisar (criar) novas perspectivas. Neste olhar que vislumbra a tridimensionalidade da

imagem antes uniforme o passado torna-se complexo, indicando outros rumos também para o presente e para o futuro.


Logo, o ato de escutar do psicanalista também é submergir na experiência que foi vivida pelo paciente para, então, possibilitar que dali eleve-se um significado inusitado. Mais uma vez depreende-se que no enfoque dado a um novo feixe de luz que brevemente

reflete o brilho de um traço anteriormente opaco no relato da velha experiência há um novo sentido. É importante que a interpretação da história também esteja presente na escuta de um discurso. Contudo, como mostra a análise benjaminiana, a história só é evocada

em momentos repletos de sentido e não como dados vazios de um tempo linear e organizado cronologicamente. A interpretação psicanalítica é capaz de iluminar os elementos concomitantemente atemporais e históricos, buscando a singularidade e novidade de uma dada expressão destacada da história linear, mas simultaneamente

pertencente a esta já que é justamente dela que pôde se diferenciar e se destacar. Como diz Muricy: "[...] a interpretação, atenta à temporalidade intensiva de idéias e obras de arte, propõe-se a estabelecer elos intensivos capazes de arrancar a obra da repetição a que

lhe condenara a continuidade linear" (MURICY, 1999, p. 195).


A psicanálise, deste modo, pode ser analisada à luz da concepção benjaminiana de temporalidade. Os traumas, as experiências infantis e suas repetições não são relembrados linearmente nas associações livres feitas durante as sessões de análise, mas é a brevi-

dade do presente vivido na relação transferencial, as associações, a escuta e as interpretações referentes ao momento atual que remetem paciente e analista ao passado, que está sendo repetido e retificado ao mesmo tempo. O passado não está sendo simples-

mente reproduzido tal e qual foi, mas na repetição há invenções. Isto significa que uma experiência inaugural só pode ocorrer em decorrência da história e como ruptura radical em relação a esta.


No âmbito psicanalítico a interpretação suspende o tempo vazio vivido muitas vezes pelo paciente e inaugura uma paradoxal "nova repetição" que depende e independe da história. O sujeito que se submete ao tratamento proposto pela psicanálise não procura uma

adaptação ao que lhe convém mas, ao contrário, irrompe de uma continuidade estagnada, mostrando um compromisso com o passado e a renovação no presente.


O mesmo ocorre em Proust que, mergulhando nas inumeráveis facetas de sua vida transcorrida, traz à luz novas cintilações, novas nuanças, outros vislumbres para as experiências que pertenciam ao inerte passado. O movimento de imersão próprio do caráter

intenso do tempo pensado por Benjamin aparece novamente na própria criação artística do escritor. Proust emerge de seu mergulho no passado com novas versões e iluminações para ele. Então, passado torna-se presente e, por esta razão, ganha sentido, deixando

de ser algo estanque. O passado é a matéria para erigir o novo já que há plasticidade no tempo transcorrido. Este não se trata de um condensado acúmulo de experiências imutáveis. Não à toa o nome da obra remete-nos ao tempo perdido, buscá-lo significa recuperá-lo sob uma outra forma ou, em termos freudianos, recuperar o objeto de desejo infantil no momento atual.


Encontros e desencontros


Vimos que Proust presentifica suas lembranças, dando-lhes novos tons. Porém, não podemos esquecer que o próprio momento fugaz em que se desenrola a experiência presente concentra reminiscências e criação.


Ainda no volume À sombra das raparigas em flor, Proust atenta para detalhes do modo como se dá o encontro entre duas pessoas. É impressionante a habilidade de Proust para apreender as sutilezas do funcionamento psíquico, neste caso revelando o que ocorre quando há o encontro com um conhecido rosto de alguém. Há traços que claramente se mantêm, mas há também detalhes surpreendentes. O autor escreve a respeito das raparigas que a personagem Marcel conhecera nas suas férias de verão em Balbec: "Ademais, como

diante das moças não sentia eu o fastio que o hábito cria, cada vez que me encontrava na sua presença tinha a faculdade de vê-las, isto é, de sentir um espanto profundo" (PROUST, 1999, pp. 430-1).


Esse susto parece vincular-se ao fato de o hábito ainda não ter sido capaz de impregnar as relações de Marcel com as raparigas de Balbec. Contudo, vale a pena prosseguir nas divagações proustianas para pensar qualquer tipo de encontro, até mesmo aqueles mais

profundamente marcados pelo hábito. As descrições do escritor, pouco rigorosas na intenção filosófica ou científica, são extremamente precisas quando nos voltamos para o modo como as relações humanas são estabelecidas, indicando mais uma vez a pertinência

existente ao se pensar a simultaneidade entre a repetição e a surpresa presente na experiência humana. Diz ele, continuando seu pensamento sobre o encontro com as jovens de Balbec:


Sem dúvida esse espanto é em parte devido a que a criatura nos apresenta então uma nova face de si mesma; tão grande é a multiplicidade de cada uma, tal a riqueza de linhas de seu rosto e de seu corpo, linhas das quais tão poucas vezes tornamos a encontrar na simplicidade arbitrária de nossa lembrança, logo que nos separamos da pessoa (PROUST, 1999, p. 431).


Nos encontros com as garotas de Balbec, Proust concentra sua atenção nas linhas do rosto e nos contornos do corpo e, em suma, nos atributos relacionados à forma estética. Enquanto dirige-se ao compromisso marcado com elas ou até mesmo antes, Marcel nutre

expectativas que estão amarradas com as últimas lembranças das meninas. Ao deparar-se com as suas faces, entretanto, admira-se diante de tantos fatores inesperados e os resquícios da memória que alimentaram sua imaginação desmoronam-se:


Como a memória escolheu determinada particularidade que nos impressionou, isolou-a, exagerou-a, fazendo da mulher que nos pareceu alta um estudo em que o cumprimento de seu talhe é desmesurado, ou de uma mulher que nos pareceu rosada e loira uma pura "harmonia em rosa e ouro", no momento em que essa mulher está de novo perto de nós, todas as outras qualidades esquecidas que fazem equilíbrio com aquela assaltam-nos, diminuindo a altura, afogando o róseo, e substituindo o que viemos exclusivamente

procurar por outras particularidades que lembramos haver notado da primeira vez e não podemos compreender que contássemos tão pouco em revê-las (PROUST, 1999, p. 431).


A recordação que sofre o impacto do presente por meio de aspectos surpreendentes inerentes a ele também ganha ares divertidos na obra proustiana: "Recordamos: vamos ao encontro de um pavão e damos com uma peônia" (PROUST, 1999, p. 431).


A precária lembrança do passado, unida à imprevisibilidade do presente existente no defronto com um outro alguém, convidam-nos uma vez mais a explorar o tema deste ensaio. A combinação entre o que ocorreu e o vir-a-ser se estende, deixando de ocupar apenas a

expressão e a fruição artísticas. Em qualquer manifestação humana esses dois vestígios do tempo aparecem reunidos, um incitando ao outro dialeticamente.


Voltando à psicanálise é possível agora pensar na especificidade das sessões clínicas em que se encontram analista e paciente. No curto período de uma sessão não podemos deixar de considerar esse caráter imprevisível e repetitivo do tempo na própria transferência. Este traço que mistura o momento atual aos tempos longínquos aparece também na relação transferencial, sendo bastante trabalhado na obra freudiana como também em tantas outras obras clássicas da psicanálise.


Para Freud, a transferência é também uma repetição, ou seja, é a atuação dos conteúdos recalcados que se dirigem para o psicanalista. Mas a própria repetição não ocorre tal como no passado, aparecendo sob nova forma ligada diretamente ao analista. É por tal

razão que Freud adverte que se deve "tratar a doença não como um acontecimento do passado, mas como uma força atual" (FREUD, 1996: 153). Além disso, Freud salienta que a transferência não é um fenômeno que ocorre especificamente no processo analítico,

mas pode ser observada nas mais diferentes espécies de relações humanas.


A psicanálise freqüentemente atenta para o aspecto repetitivo e sintomático, para aquilo que se mantém, embora lide invariavelmente com um aspecto essencialmente impresumível do humano, graças ao qual pode dar mobilidade e apontar novos caminhos ao paciente.

A variação do mesmo, o que escapa, o que não se mantém é o que permite ao sujeito emergir de um novo e criativo modo. O psicanalista deve, portanto, ser hábil também para detectar pontos desviantes de um discurso repetitivo. O espanto também é imprescindível para o trabalho do psicanalista, não havendo sistema teórico que dê conta desse material tão fundamental no trabalho clínico.


A união entre novidade e repetição que enreda paciente e analista em cada uma das sessões de análise pode ser iluminada mais uma vez pelo olhar proustiano: O "inevitável espanto" despertado frente à pessoa conhecida "não é o único; pois ao lado deste [espanto]

há outro, que provém, não já da diferença entre a realidade e as estilizações da lembrança, mas da diferença entre a criatura que vimos da última vez e esta que nos aparece agora com outra luz, mostrando-nos um novo aspecto" (PROUST, 1999, pp. 430-1).


Após enfocar primordialmente a novidade, Proust atenta para o caráter imprescindível daquilo que se mantém e é invariável no indivíduo:


Mas em grande parte o nosso espanto se origina de que a criatura apresenta também uma mesma face. Seria mister um esforço tão grande para tornarmos a criar tudo o que nos foi oferecido por algo que não é o nosso próprio ser [...] que, mal recebemos a impressão,

descemos insensivelmente a encosta da lembrança, e, sem o notar, dentro em pouco estamos já muito longe do que sentimos. De modo que cada novo encontro é uma espécie de reafirmação que nos traz de volta ao que muito bem tínhamos visto. Mas já não nos lembrávamos, porque o que chamamos recordar uma criatura é na realidade

esquecê-la. Enquanto ainda sabemos ver, no momento em que nos aparece o traço esquecido, nós o reconhecemos e temos de retificar a linha desviada [...] (PROUST, 1999, p. 431).


Novamente retomamos a psicanálise: segundo Freud, cada indivíduo desenvolveu um modo particular de conduzir-se na vida erótica constantemente repetido no decorrer de sua vida. A transferência, no trabalho analítico, é justamente a presença deste padrão de comportamento peculiar a um indivíduo, aparecendo na relação estabelecida com o psicanalista. O velho, o recalcado, o esquecido, o não dito ressurgem na experiência inaugural que, apesar de nova, também é antiga e passível de ser reconhecida. Um proc-

esso analítico não permite conhecer o inconsciente recalcado, mas paradoxalmente reconhecer o novo, no presente momento em que o antigo se reapresenta em uma mesma e nova forma. É aí que o antigo pode ser, como diz Proust, retificado. O novo - o presente

- muda o passado. Quando estamos no presente, é o passado que se transforma.


Proust reconhece no trato com as moças tanto os fios de sua memória como também o que é inusitado, concluindo a este respeito: "[...] vinha daí que na perpétua e fecunda surpresa pela qual me eram tão saudáveis e suaves aqueles cotidianos encontros com as moças à beira-mar, entrassem em pares iguais as descobertas e as reminiscências" (PROUST, 1999, p. 431).


Assim como nesses encontros descritos por Proust observamos também, em cada uma das diferentes sessões psicanalíticas, gestos ou palavras emitidas pelo paciente com um brilho renovado que se reflete na voz ou em um movimento inesperado que acaba por

surpreender e obrigar o psicanalista a incessantemente reposicionar-se, jamais acomodando-se em suposições, teorias e hipóteses anteriormente previstas. De nada adianta identificar com precisão a estrutura psíquica de um paciente, se esta maestria diagnóstica obstar a percepção do analista para deslindar variações que se

desenrolam no instante presente.


Os encontros de Marcel com as raparigas de Balbec oferecem ainda uma experiência semelhante com aquela que o psicanalista pode ter com um paciente:


Acrescente-se a isso a agitação despertada pela ideia do que elas [as raparigas] eram para mim, nunca idêntica ao que eu supusera, motivo pelo qual a esperança do próximo encontro nunca se parecia com a experiência precedente, mas com a recordação vibrante

ainda, da última entrevista, e assim se compreenderá como cada passeio impunha a meus pensamentos uma violenta mudança de rumo, e não na direção que eu me traçara na solidão de meu quarto, com o espírito descansado. E essa direção ficava olvidada, abolida,

quando eu voltava vibrando, como uma colméia, com todas as frases que me haviam perturbado e continuavam ressoando dentro de mim. Toda criatura se destrói quando deixamos de vê-la; seu aparecimento seguinte é uma criação nova, diversa da imediatamente anterior, senão de todas. Porque dois é o número mínimo de variedade

que reina nessas criações. [...] No confronto de nossa recordação com a realidade nova, é isso que há de marcar nossa decepção ou surpresa, e se nos afigura um retoque da realidade, avisando-nos de que havíamos recordado mal (PROUST, 1999, pp. 431-2).


O psicanalista, assim como a personagem proustiana, é permanentemente levado a improvisar, dependendo da necessidade que o paciente apresenta. Assim é que assume ora ares de brincadeira, ora tons maternais ou, então, coloca-se no lugar de representante

da lei, estabelecendo limites claros. No interior dessas três possibilidades apresentadas as variações podem ser infinitas e os diferentes modos como o analista as conduz são imprevisíveis, até mesmo para ele. Por meio de sua atenção flutuante, o psicanalista

embarca nas lembranças relatadas pelo paciente e no interior delas eis que aquele capta e interpreta um timbre dissonante que insurge na melodia discursiva de quem fala. Um desconhecido rumo pode ser, então, desbravado pelo paciente tanto nas suas associações

livres como também nas significações que dará às suas experiências. E, desta maneira, paciente e analista desvendam novos mares no interior de um universo familiar.


Vemos que a memória não respeita qualquer ordem convencional e o que fora desdenhado na lembrança, pode assumir lugar de destaque na percepção recente. É deste modo que um detalhe sutil pode saltar aos olhos com uma mescla de surpresa e reconhecimento. Proust expressa essa idéia ao mostrar como Marcel nota linhas e particularidades do rosto das raparigas que haviam sido anteriormente desprezadas por ele:


E por sua vez esse aspecto do rosto, anteriormente desdenhado, e justamente por isso mais sedutor agora, mais real e significativo, se converterá em matéria de sonhos e recordações. [...] [E] da vez seguinte de novo virá aquele elemento voluntarioso do olhar penetrante, do nariz pontiagudo e dos apertados lábios, a corrigir o desvio existente entre o nosso desejo e o objeto que julgava corresponder-lhe. É claro que essa fidelidade das impressões primei-

ras, e puramente físicas, que sempre tornava a encontrar junto de minhas amigas, não se referia unicamente às suas feições, pois já se viu como eu era sensível à voz delas, ainda mais inquietante [...], aquela voz semelhante ao soar único de um pequeno instrumento

em que cada qual punha toda a sua alma e que era exclusivamente seu (PROUST, 1999, p. 432).


A partir disto podemos também pensar como a miríade de detalhes que marcam o encontro entre duas pessoas denuncia, ao mesmo tempo, a intimidade e a distância existente entre elas. Aqui o caminho que evoca a relação entre passado conhecido e presente surpreendente anuncia-se sob uma nova face. A proximidade relacionar-se-ia ao já estabelecido numa história conjunta enquanto que a distância mostraria a parcela do novo que se manifesta na estranheza diante daquele que supomos conhecer inteiramente. Ao

emitir aquelas poucas palavras de uma interpretação o psicanalista mostra o concomitante alcance e limite de seu entendimento frente a tudo aquilo que o paciente pronunciou em sua associação livre. Este, ao escutar a voz de seu analista através de inesperadas palavras, sente-se, por vezes, acolhido em um reconhecimento, mas também apartado em sua singularidade que denota sua inevitável solidão. A respeito das vozes, as observações de Proust ainda nos ensinam algumas coisas:


Às vezes me espantava ao reconhecer, depois de passageiro esquecimento, a linha profunda de algumas dessas vozes traçada por alguma inflexão. Tanto assim que as retificações que tinha de fazer a cada novo encontro, para tornar perfeitamente exato, eram tão próprias de um afinador ou de um professor de canto como de um desenhista (PROUST, 1999, p. 432).


E já não demoraríamos para embarcar em outra variação do tema aqui discutido para a qual infelizmente não há mais espaço...


Bibliografia


CROMBERG, R. U. In GURFINKEL, D. Leituras de Freud a partir de um livro: uma reflexão. Percurso: revista de psicanálise, São Paulo, v. X, n. 20, pp. 108-119, jan./julh. 1998.

BENJAMIN, W. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.

FREUD, S. Escritores criativos e devaneio. n Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. IX). Rio de Janeiro: Imago, 1996.

______A dinâmica da transferência. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. XII). Rio de Janeiro: Imago, 1996.

______Recordar, repetir e elaborar. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. XII). Rio de Janeiro: Imago, 1996.

MURICY, K. Alegorias da dialética. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.

PROUST, M. À sombra das raparigas em flor . In PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido . São Paulo: Globo, 1999.

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