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Léa Silveira: olhar microscópio




Resumo: À contrapelo de uma “natureza” colonizada, como é a brasileira, e de uma história tecida pelas linhas de pensadores homens, analisar a trajetória de pesquisadoras do país é um apelo ao reconhecimento do que elas realizaram. Todavia, observar o conjunto de uma obra não é apenas ato político. Trata-se também de contribuir para a pluralidade do tecido simbólico que compõe o repertório intelectual brasileiro. Sobre esse horizonte apresentou-se no I Encontro GEPEF parte da obra de Léa Silveira. Sua complexidade a coloca ao lado da produção de “grandes autores (as)”. Léa Silveira reúne, a um só tempo, a análise estrutural de textos consagrados e a originalidade de seu pensamento. Esses dois componentes perfilam-se em seu método microscópico. O artigo contempla a primeira fase de sua produção, até incursões feministas. Veremos que ela alcança sua autoria na intersecção da filosofia com a psicanálise, observando os limites epistemológicos do ensino lacaniano.


Palavras-chave: Léa Silveira. Psicanálise. Jacques Lacan. Método microscópico.


Abstract: In contrast to a colonized “nature”, such as the Brazilian, and a history woven by the lines of male thinkers, analyzing the trajectory of women researchers in the country is an appeal to the recognition of what they have accomplished. However, looking at the whole of a work is not just a political act. It is also about contributing to the plurality of the symbolic fabric that makes up the Brazilian intellectual repertoire. On this horizon, part of Léa Silveira's work was presented at the I Encontro GEPEF. Its complexity places it alongside the production of “great authors”. Léa Silveira brings together, at the same time, the structural analysis of consecrated texts and the originality of her thought. These two components are profiled in their microscopic method. The article contemplates the first phase of her production, until feminist incursions. We will see that she reaches her authorship at the intersection of philosophy and psychoanalysis, observing the epistemological limits of Lacanian teaching.


Keywords: Léa Silveira. Psychoanalysis. Jacques Lacan. Microscopic method.



1. Apresentação feita em 2020 no I Encontro GEPEF cujo título foi “As intelectuais brasileiras como autoras de referência”.


2. Doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP). Psicanalista, Pesquisadora da Cátedra Edward Saïd, integrante do GEPEF (Grupo de estudos, pesquisas e escritas feministas), membra do GT de Filosofia e Psicanálise da ANPOF, integrante do Projeto Causdequê? (SUS-Programa do Adolescente do Estado de São Paulo).


Salvo algumas exceções, é possível identificar uma espécie de descaso em relação às obras de autoras brasileiras. Dito diretamente e com todas as letras: falta fortuna crítica em torno de seus trabalhos. O problema não é simples. Seria possível tratá-lo de vários prismas. O mais óbvio é o sintoma que nos acomete enquanto latino-americanas de espírito colonizado e um tanto quanto deslumbrado pelos cânones internacionais. Tal impasse sintomático acaba por nos submeter a certas lógicas perversas quanto à recepção das obras produzidas no Brasil, não só como intelectuais individualmente consideradas, mas sobretudo como sujeitos que necessitam do reconhecimento nas esferas institucionais que concedem ou não legitimidade para certos autores(as) e modelos de produção acadêmica. Daí até chegar à intrincada misoginia subjacente ao que se edifica como consagrado na cultura brasileira e internacional seriam vários impasses a serem elencados. Não caberia tratar aqui dos complexos meandros desse problema.


Limito-me, portanto, a levantar apenas a mais simples dessas várias camadas da dificuldade: recortar o percurso, o pensamento e a obra de uma autora envolve certos perigos que se expressam em um gesto de mão-dupla: de um lado cria-se um pouco arbitrariamente uma moldura, o que dá a ver certas nuanças, talvez imperceptíveis quando imperava o completo emaranhado da sua vida junto à pesquisa que moveu seus interesses intelectuais e desejos inconscientes; de outro, talha-se o trabalho autoral para expô-lo como obra organizada em sua composição própria, o que carrega traços de violência. Diante da arbitrariedade e da violência implicadas no gesto, é compreensível que se titubeie frente ao ato de produzir fortunas críticas. Cortes implicam parcialidades que relegam zonas importantes às sombras. Os limites são os de repertório daquele que busca ler a obra e sobre ela tecer seus comentários.


De qualquer maneira, considero que é chegada a hora de nós, intelectuais brasileiras, deixarmos de lado o que, em outro contexto, Paulo Arantes (1988) denominou de maneira certeira “timidez da filosofia brasileira” para assumirmos, com toda a força que temos em nossos corpos e espíritos, o risco de manusear o material daquelas autoras que estão em torno de nós e produzem exaustivamente, embora em ambiente não raro inóspito e de escasso reconhecimento.


Diante da tarefa que clama por nossos esforços, não podemos temer equívocos que inevitavelmente serão cometidos. Um ponto de partida, talvez consolador, seja aquele de saber que o pensamento se constrói quase sempre de maneira hipotética e, por conseguinte, fatalmente errante. Com isso, assume-se que métodos que buscavam um princípio de certeza já deveriam ter sido abandonados desde o evidente fracasso do projeto moderno, cujo legado não foram as bases sólidas da razão com vistas à maior liberdade, mas o tempo histórico das catástrofes contemporâneas. Em suma: seria bom acabarmos de vez com exigências que são de saída malogradas. Melhor: seria essencial assumirmos o caráter provisório de nossas produções, ainda mais quando a autora comentada está vivinha e de olhos bem abertos ao nosso lado, observando tudo o que sobre ela será dito.


1 OS PRIMEIROS MOVIMENTOS DE LÉA SILVEIRA


Parto da hipótese, fundada em pura elucubração de teor imaginativo, de que de forma inadvertida Léa Silveira experimentou, durante o curso de psicologia, alguns movimentos filosóficos de seu pensamento e que, diante de suas questões, elegeu quase intuitivamente um mestrado que poderia lhe propiciar espaço para desenvolver suas inquietações. Sua intuição, que na verdade é uma espécie de racionalidade acurada do campo inconsciente, não poderia ter sido mais acertada.


Carregando consigo suas perturbadoras interrogações sobre os autores da psicanálise, especialmente Freud e Lacan, partiu para um dos centros brasileiros mais proeminentes na intersecção entre filosofia e psicanálise: o Departamento de Filosofia da UFSCar, que à época tinha em seu quadro docente Bento Prado Junior e Luiz Roberto Monzani.


Com eles, todo um leque de referências abriu-se em torno dos inúmeros cruzamentos entre os dois campos – a filosofia e a psicanálise – com professores não só da UFSCar, mas também da UNICAMP. À sua formação básica sólida, perceptível pela forma desenvolta e refinada de manejar a língua portuguesa, uniu-se a penetração no campo de pesquisa. Ali alimentou seu ágil raciocínio e aprimorou a elegância de seu estilo com a língua. Essa conjunção de elementos moldou seu método de pesquisa e sua maneira própria de análise de textos e autores.


Nele é possível reconhecer uma absorção, que se deu por vias indiretas, do legado uspiano de análise e estudos de textos à la Guéroult e Goldschmidt mas que, a meu ver, já incorpora tracejados próprios. O rigor que orienta as leituras de Léa Silveira indica, antes de mais nada, um profundo respeito pelo pensamento do(a) autor(a), apreciado(a) criticamente quase sempre em um horizonte de validade universal. Isso significa que, independentemente do autor ou da autora estudado(a), ela deixará seus olhos correrem pelas linhas do texto esquecendo-se do nome que o assina e fixando-se na verdade que dali possa ser extraída. Que não se espere dela nenhuma espécie de condescendência – nem com pequenos deslizes. Vez ou outra ela pode, pela sua delicadeza, ferir sua própria natureza e não dizer nada sobre certos escorregões. Certamente, porém, os terá notado. Esse olhar microscópico, aliás, é a melhor qualidade incorporada ao seu método, mas imagino que a ela estejam associadas certas dificuldades, especialmente no contexto brasileiro, cujos laços são atados por vias que suportam mal críticas mais rigorosas.


Minha outra suposição é de que o teor de verdade que orienta as leituras e análises realizadas por Léa Silveira está, em certa medida, alinhado aos pilares iluministas. Não se trata de insistir, de maneira ingênua, no projeto moderno de esclarecimento. Talvez seu viés tenda mais para algo que foi declarado em certa ocasião por Bento Prado Junior: “o grande perigo [...] é o fanatismo, o sectarismo e o cânone – o fio de quarentena que se estabelece em torno de certas tradições que se tornam sacrossantas”. (apud NOBRE; REGO, 2000, p. 213)


Com seu olhar clínico, Léa Silveira não poderia deixar de enxergar os limites das luzes – tanto assim que seu objeto de interesse principal nunca deixou de ser a psicanálise. Todavia, se insiste em mantê-las como alicerce é porque acredita que a denúncia contundente e racional de sua insuficiência seja capaz de levar o interlocutor a pensar melhor, a enxergar com mais nitidez pontos obscuros e que recaem no irracionalismo injustificável. Suas notas pretendem, ao que parece, cobrar as mais amplas e vigorosas consequências dos valores que concernem à justiça, a igualdade e a liberdade de todos os seres existentes.


2 MINHAS HIPÓTESES SOBRE AS INQUIETAÇÕES DE LÉA SILVEIRA


Numa entrevista concedida a Marcos Nobre e José Marcio Rego, Bento Prado Junior declara:


[...] o que estou tentando fazer agora – mas, pensando bem, nunca trabalhei com outro assunto – é circunscrever a ideia de subjetividade pela perspectiva de ipseidade. Foi o que fiz na tese sobre Bergson, ao mostrar a ideia de subjetividade na sua articulação com a ideia de negação. Foi o que fiz também no livro sobre Rousseau, ao mostrar o lugar da subjetividade na linguagem e mais do que na linguagem, no discurso. E é o que tenho retomado, ultimamente, nos meus cursos e em alguns textos, uma tentativa de fazer uma arqueologia do Ich denke, do cogito, em Descartes, Kant, e Wittgenstein, em que procuro mostrar as metamorfoses da ideia de sujeito ao longo da filosofia moderna, que se caracteriza por uma progressiva despsicologização e dessubstancialização da ideia do eu (NOBRE; REGO, 2000, p. 214).


Léa Silveira pôde acompanhar, entre os anos 2000 e 2006, as aulas de Bento Prado Jr dedicadas a esses temas. Ela não esconde sua filiação beneditina. Sua admiração pelo filósofo brasileiro jamais significou, porém, submissão ao saber do grande mestre. Se seu desejo ali se ancorou era porque o percurso de Bento Prado Jr articulava-se às suas mais antigas e profundas inquietações: aquelas esboçadas quando ainda era uma jovem estudante universitária. Foi assim, então, que ela pode desenhá-las em torno da questão do sujeito que, para ela, formalizou-se em uma tese de doutorado, cuja forma, conjugada ao conteúdo, é a demonstração mais clara de seu método microscópico.


E a partir daí ela afirma categoricamente: o interesse de Lacan é, desde sempre e em qualquer momento, fazer uma teoria do sujeito. Evidentemente pode-se concordar com essa formulação feita por ela a partir de sua extensa leitura da obra de Jacques Lacan. Contudo, como da obra do psicanalista francês seria possível extrair tantos outros elementos a serem anunciados de maneira igualmente peremptória, desconfio, cá com meus botões, que essa foi a questão capaz de conjugar toda a série de variáveis que formalizavam seus desejos agora embebidos dos ensinamentos de Bento Prado Jr.


3 OS IMPASSES DO SUJEITO DESCOBERTO POR LÉA SILVEIRA


Mas qual o sujeito que ela descobre ser o lacaniano? Evidentemente, a resposta para essa questão é a própria tese de doutoramento da autora (2007). Não caberá explorá-la exaustivamente aqui. O que queria indicar, contudo, são seus passos dados anos depois de ter esmiuçado cuidadosamente todos os intrincados meandros de tal sujeito lacaniano: aqueles que se dirigiram aos estudos feministas. Tais passos não derivaram de uma militância ou de questões relativas às injustiças que acometem a vida concreta de todas nós, embora isso evidentemente tenha seu papel.


Entretanto, se Léa Silveira enveredou decisivamente por essa trilha inesperada no interior de sua trajetória intelectual foi em razão de uma desilusão epistemológica em relação às suas descobertas sobre tal sujeito. Decepção que, suponho, tenha se dado nos últimos três ou quatro anos e que se refere ao fato de ter descoberto, com certa surpresa, que o sujeito lacaniano é homem.


Essa simples afirmação carrega, desse ponto de vista epistemológico, os mais complexos entraves para a psicanálise lacaniana e a estremece de maneira irreversível. Sim, pois da afirmação desdobra-se, entre outros problemas, o abalo de sua defesa da dimensão simbólica estrutural, isenta da ingênua empiria freudiana. É o corpo concreto de Jacques Lacan, como sujeito de enunciação, que faz sua aparição diante dos olhos de Léa Silveira. O vislumbre da carne concreta de Lacan tem impactos sobre a validade de seus enunciados psicanalíticos. O que se nota na tonalidade material dessa voz, enunciada pelo corpo do psicanalista francês, é que sua verdade exclui a verdade que pode ser enunciada de tantos outros corpos e que estes poderiam articular diferentemente a própria dimensão formal da linguagem e simbólico-estrutural do campo social. Vejamos brevemente este ponto.


O que pode ser, afinal, este sujeito lacaniano? Ao menos na década de 1950, “a linguagem é a lei não só do inconsciente, mas do próprio homem” (SALES, 2004, p. 54), como ela afirma, ainda sem perceber o gênero implicado na frase, acrescentando a isso o axioma “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” (LACAN, 1964/2008, p. 147). Com isso, ela reconstitui os procedimentos de Lacan, mostrando que, para conduzir a articulação do sujeito com a estrutura da linguagem, ele introduzirá um significante como uma falta no Outro rente ao qual estaria o objeto a. Fica claro que a cultura como linguagem caracteriza a especificação para abordar a ciência do sujeito. Entretanto, os limites do eu colocam a exigência de introduzir uma ruptura com a imagem especular alienante, dando lugar a uma diferenciação entre eu e sujeito. O primeiro ficaria restrito à ordem imaginária e imbuído de um teor de formação sintomática e o segundo, sujeito do inconsciente, passaria a revestir-se, dali por diante, pelas linhas que concernem à verdade do desejo.


O passo em direção à teoria simbólica, como campo capaz de abarcar a verdade do sujeito, remete à exterioridade social e ao sistema de linguagem que a estrutura. O inconsciente estrutural é formal e a ele enreda-se certos vestígios da materialidade dos significantes. Se estamos no campo estrutural da linguagem e a linguagem é a cultura ou o campo do Outro, caberia pensar qual é o colorido que recebe tal estruturação.


A paleta de cores para o desenho de tal estrutura é dada a Lacan pela antropologia de Lévi-Strauss para quem a cultura consiste em regras que regem as trocas em três níveis: mulheres, bens e mensagens. Sistemas de parentesco, de economia e de organização linguística modelam-se simbolicamente como estrutura por vias relacionais.


Tais relações de troca implicam, pela lógica aqui explicitada, a exclusão da mulher do campo da linguagem, do que também se deduz a sua exclusão da cultura e da política. Como objeto de troca, ela é o que serve aos homens para articularem-se simbolicamente na estrutura de parentesco e de linguagem.


Se Jacques Lacan fala de determinado lugar, marcado enquanto homem, Léa Silveira (2017) imediatamente retoma o seu em Assim é a mulher por trás de seu véu?. Ali declara que é desse lugar marcado enquanto uma mulher que lê Lacan na filosofia que ela organizará seu discurso. É dali, desse ponto claramente explicitado, que ela lançará as mais embaraçosas questões a certos enunciados lacanianos.


O ponto de maior embaraço para Jacques Lacan torna-se o significante fálico, que articula a estrutura transcendental do desejo. A insígnia do falo, privilegiada por causar o desejo, articula, para ele, o campo da linguagem. Seja imaginário, seja simbólico, o falo, lembra-se Léa Silveira, ao citar as palavras do próprio Lacan (1960a/1998), é a “imagem do pênis” (p. 836). O falo, ela lembra sem perdão ao citar Lacan, “simboliza o lugar do gozo na medida em que ele faz falta na imagem desejada é apenas porque se esteia no ‘órgão eréctil’ [LACAN, 1960a/1998, p. 837], algo que é capturado porque é o que há de ‘mais saliente’ na copulação [LACAN, 1958/1998, p. 699] e porque sua ‘turgidez’ é a ‘imagem do fluxo vital’ [LACAN, 1958/1998, p. 699]” (SILVEIRA, 2017, n. p.).


São termos e expressões que impedem o fácil e recorrente argumento, usado em defesa do mestre Lacan, de que o pênis concreto se diferencia da função fálica na ordem do desejo. Ora, vê-se logo que nada passa batido ao olhar microscópico de Léa Silveira. Que não se venha, então, com tergiversações a respeito desse objeto ser oco e destituído de marcas históricas claras. Colocar o significante fálico como causa do desejo aponta para uma consistência clara do membro. Nas próprias definições desse objeto tido como vazio e abstrato encontra-se um corpo bem contornado e ele é o corpo de um homem – é isso o que está, afinal, em jogo nas análises de Léa Silveira. Se esse é o território móbil do desejo e lança-nos ao campo da linguagem, estamos em torno do que é colocado, nas elaborações lacanianas, como símbolo de determinado poder. Ou seja, estamos aqui enredadas a uma defesa travestida de abstração de uma estrutura alinhada ao patriarcado.


Mas há ainda outras partículas que, capturadas pela lente ocular de Léa Silveira, tornam as evasivas de inveterados lacanianos injustificáveis. Ela identifica em Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina (LACAN, 1960b/1998), a admissão, por parte de Lacan, de que a construção em torno do significante fálico seria circunstancial, isto é, marcadamente histórica.


Em tal contexto, Léa Silveira destaca ainda a formulação feita por Lacan (1960b/1998) segundo a qual: “na dialética falocêntrica” a mulher “representa o Outro absoluto” (p. 741). É curioso, levando-se em conta todo esse contexto, que Lacan tenha se esforçado por fazer desse aspecto aparentemente conjuntural algo que atingiria uma dimensão transcendental e, por conseguinte, universal.


Seguindo esse caminho movediço das formulações lacanianas, o que Léa Silveira pesca no Seminário 5 não é menos embaraçoso. Ali Lacan (1957-1958/1998) irá dizer que o falo, como significante do desejo, “não é uma coisa deduzida” (p. 273) estruturalmente, mas um dado fornecido pela experiência analítica. Imperdoável! Se é para recorrer a um dado da experiência clínica, trata-se de uma construção extraída da mais reles empiria que pode, por conseguinte, assumir seu caráter variável e contingente.


Daí por diante, pode-se dizer que Léa Silveira (2017) arregala os olhos sobre as linhas formuladas por Jacques Lacan, pinçando uma série sucessiva de colocações que o deixam de saia justa – com o perdão da expressão para adjetivar a situação de um homem tão bem posicionado no universo falocêntrico. Todos os vulgares clichês relacionados ao lugar da mulher na sociedade patriarcal saltam nítidos e de modo incontornável daquelas curvas barrocas próprias à escritura de Lacan. São frases como: “Com referência ao que constitui a chave da função do objeto do desejo, o que salta aos olhos é que não falta nada na mulher. Estaríamos inteiramente errados em considerar que o Penisneid é um termo final” (LACAN, 1962-1963/2005, p. 200) ou “Assim é a mulher por trás de seu véu: é a ausência do pênis que faz dela o falo, objeto do desejo” (LACAN, 1960a/1998, p. 840). Nos dois exemplos, temos a mulher em seu lugar mítico e elevado que, como estamos cansadas de saber, recai subsequentemente na vala comum da depreciação: o clitóris, diz Lacan (1960b/1998) já no polo oposto, “coloca o sexo da menina sob o signo de uma menos-valia orgânica” (p. 738).


Há trechos ainda mais embaraçosos para o velho Lacan. Deixo-os de lado para enfatizar as características da lente microscópica de Léa Silveira. Ela inclui não só a capacidade de capturar minúcias e adensá-las em um universo maximizado, mas introduz ali, além de tudo, a agilidade de seu vigoroso raciocínio. Não terei tempo hábil para examinar essa faceta de seu método, mas cito um exemplo com o qual vocês poderão perceber o enrosco em que está aquele que passa pelo crivo crítico de nossa autora. Diz ela, ainda a respeito do pênis enquanto órgão e do falo enquanto significante:



Cabe mencionar ainda que aquela capacidade para a ereção, que Lacan destacava na imagem do pênis, por vezes é relacionada à questão mais abstrata da oposição entre presença e ausência, embora ela seja acompanhada pela oposição tumescência/detumescência do órgão. Ora, uma presença e uma ausência só são reconhecidas quando são nomeadas, quando são conduzidas à dimensão do significante. Que sentido haveria em falar de ausência ou desaparecimento relativamente a um órgão como sendo simultaneamente estruturante e prévia ao significante a não ser o sentido implicado em uma estratégia que afinal, seria de naturalização? Parece haver, assim, momentos em que a argumentação de Lacan dificilmente teria como se esquivar desse resultado, que é exatamente aquilo que ele defende que não podemos fazer. A consequência inevitável desse caminho – de assumir que o falo é o significante do desejo porque possui a capacidade de representar uma alternação entre presença e ausência em função da capacidade eréctil de um órgão – parece ser uma normatividade assumida pela cultura, mas dada como natural; uma normatividade que eternizaria a repulsa pelo feminino de um modo tal que, exatamente, produz ambas essas noções – tanto de repulsa quanto de feminino (SILVEIRA, 2017, n.p.).


Vale sublinhar que o minucioso trabalho empreendido por Léa Silveira e que coloca Lacan em maus lençóis não retrata um mero divertimento a serviço de expor seu virtuosismo intelectual. Como busquei salientar anteriormente, a árdua tarefa visa convocar o juízo de todos ante a falta de racionalidade existente em pontos que acabam por limitar justamente os valores que nasceram dos pilares iluministas: os de igualdade, liberdade e justiça. E faz isso recorrendo aos procedimentos coerentes com esses mesmos preceitos, isto é, erguendo suas suspeitas de modo racional e demonstrando incongruências de determinados pensamentos, o que significa que suas construções primorosas são uma espécie de apelo para a racionalidade do leitor ou do interlocutor.


Como se sabe, o lugar de fala ou o lugar de enunciação, aquele que releva a verdade do sujeito do desejo, esvai-se a cada vez em que se mantêm no horizonte simbólico as palavras nele introduzidas. Ouso dizer que o corpo de Léa Silveira, que foi capaz de pronunciar tão aguçadas denúncias, deslocou-se agora para outro lugar. Quem se arriscar, como eu, a comentar seu trabalho hoje, não mais se voltará ao sujeito lacaniano.


O(a) comentador(a) será compelido(a) a se debruçar sobre as análises que a autora fez nesses últimos anos e a conhecer todo um novo léxico, isto é, todo uma nova estrutura simbólica na qual o falo não opera nenhuma função significativa em relação ao desejo. Nesse novo alfabeto, o leitor de Léa Silveira encontrará nomes como os de Nancy Fraser, Juliet Mitchell, Lélia Gonzalez, Simone de Beauvoir, Judith Butler e o de tantas outras. Só nesse novo quadro ela pode enfrentar o maior problema que a convoca nos dias de hoje e que está tão bem formulado no livro Freud e o patriarcado (2020) que tivemos oportunidade de organizar juntas:


No que diz respeito ao campo da teoria psicanalítica [...] é fato facilmente constatável que ela põe em jogo uma forma de conceber o psíquico – ou a subjetividade – como algo que se constrói a partir de um modelo que assume, em seu centro, uma equivalência generalizada entre cultura e masculinidade. Seja atravessando a argumentação de Totem e tabu e, com ela, o conceito de complexo de Édipo, seja mobilizando noções como “Nome-do-pai” ou “gozo Outro”, o lugar das mulheres (e do feminino?) é reiteradamente remetido, de maneiras que não deixam de ser complexas e profundamente ambíguas, aos limites da cultura e da civilização, visivelmente consideradas em termos patriarcais (MARTINS; SILVEIRA, 2020, p. 10).


REFERÊNCIAS


ARANTES, Paulo Eduardo. Timidez da Filosofia. Discurso, [S. l.], n. 17, 1988. pp. 45-56, set.


1988. Disponível em: <www.revistas.usp.br/discurso/article/view/37929>. Acesso em: 12 mai.

2021.

LACAN, Jaques. (1964). O seminário livro 11: os quatro conceitos fundamentais da

psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.


LACAN, Jacques. (1960a). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. pp. 807-842. LACAN, Jacques. (1958). A significação do falo. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. pp. 692-703.


LACAN, Jacques. (1960b). Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina. In:

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. pp. 734-745.

LACAN, Jacques. (1957-1958). Le séminaire, livre V: Les formations de l’inconscient. Paris:

Éditions du Seuil, 1998.


LACAN, Jacques. (1962-1963). O seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. MARTINS, Alessandra Affortunati; SILVEIRA, Léa. (org.). Freud e o patriarcado. São Paulo: Hedra, 2020.


NOBRE, Marcos; REGO, José Marcio. Conversas com filósofos brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2000.


SALES, Léa Silveira. Determinação versus subjetividade: apropriação e ultrapassagem do estruturalismo pela psicanálise lacaniana. São Carlos. 348 f. Tese (Doutorado em Ciências Humanas). Universidade Federal de São Carlos, 2007.


SALES, Léa Silveira. Linguagem no Discurso de Roma: programa de leitura da psicanálise.

Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 20, n. 1, 2004. p. 49-58, jan./abril 2004. Disponível

37722004000100007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 12 mai. 2021.


SILVEIRA, Léa. Assim é a mulher por trás de seu véu? Questionamento sobre o lugar do significante falo na fala de mulheres leitoras dos Escritos. Lacuna: uma revista de psicanálise,


São Paulo, n. 3, 2017. p. 8, 28 abril 2017. Disponível em:







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