top of page

O gesto da escrita na psicanálise




O gesto da escrita na psicanálise


Este artigo foi inspirado no texto A inquietação das palavras de Pontalis. Seu mote é a atividade da escrita na psicanálise. Procura-se responder às seguintes questões: O que leva o psicanalista ao gesto de escrever? O que o move? O que o desperta para essa ação? Teria o movimento de escrita do psicanalista relação com o movimento do poeta ou do escritor de romance, por exemplo? Ou estaria o psicanalista apenas preocupado com a transmissão científica daquilo que descobriu em sua prática? Para responder a essas perguntas foi necessário compreender o movimento da escrita tanto de forma mais abrangente como no interior do campo psicanalítico.

Nota-se que o gesto de escrever pode ser análogo ao processo psicanalítico. Além disso, conclui-se que o ofício da escrita na psicanálise não é uma atividade paralela e complementar ao seu exercício clínico, mas o define fundamentalmente.

Palavras-chave: escrita, palavra, estilo, psicanálise.

The aspect of writing in psychoanalysis

This article was inspired by Pontalis’ text La force d’attraction. The main subject of the article is the activity of writing in psychoanalysis. One attempts to answer the following questions: What drives the psychoanalyst to write? What motivates him/her? What triggers this action? Is there any relation in the act of writing by a psychoanalyst to that of a poet’s or a novelist, for instance? Or is the psychoanalyst only concerned about transmitting scientifically what was uncovered in his/her practice? To answer these questions, it was necessary to understand the act of writing itself in a broader context as well as the inside the field of psychoanalysis.

One realizes that the act of writing can be analogous to the psychoanalytical process. Furthermore, the conclusion is that the use of writing in psychoanalysis is not a parallel and complimentary activity to the clinical exercise, but rather fundamentally defines it.

Key-words: writing, word, style, psychoanalysis.



O gesto da escrita na psicanálise


Após o feriado de Carnaval, ao checar meus e-mails, noto uma mensagem acerca das inscrições de trabalhos para a Revista Trieb de psicanálise. O tema do próximo número é Literatura e Psicanálise. Sinto-me subitamente instigada a escrever sobre o assunto. A articulação entre a arte e a psicanálise me interessa especialmente. Mas lembro-me de que há poucos dias enviara um texto à outra revista que discutia justamente algumas aproximações entre a literatura de Marcel Proust e os conceitos freudianos.


É difícil elaborar um novo texto sobre o mesmo assunto. Apesar de meu desejo de escrever, nada o alimenta, nada lhe dá corpo. E logo meu pensamento deriva para o próprio ato da escrita. Reflito sobre a dificuldade desse ofício e retomo anotações e esboços já realizados, tentando encontrar ali um pretexto que me impulsione a escrever. Lembro-me de textos que refletem uma escrita com vida própria, autônoma, orgânica: Água viva, de Clarice Lispector, ou Galáxias, de Haroldo de Campos. Fernando Pessoa é outro bom exemplo. Mas nenhum deles se relaciona diretamente à psicanálise. Uma interface precisaria ser estabelecida e arduamente trabalhada. Penso também em Kant, o sistemático filósofo, que mostra em seus ensaios antropológicos a importância do livre curso da imaginação no ato de escrever.


Esqueço o impasse. Quase desisto de meu intento. Vou à minha sessão de análise. O dia em São Paulo é um pouco atípico. Quarta-feira de cinzas. Tudo fechado até o meio-dia. Pouco a pouco as coisas começam a ganhar vida, forma, movimento. Em minha análise o tema novamente é a escrita. Ele se impõe e me perturba já há algum tempo. Saio da sessão sem nenhuma expectativa, sem nem mesmo um rumo certo. Penso num livro que gostaria de ler e me dirijo à livraria. Ali deixo o meu olhar vaguear pelos títulos ordenados na prateleira de psicanálise. Vejo um livro que me foi recomendado por uma colega psicanalista. Folheio-o. Não desperta o meu interesse em particular. É de Pontalis. Outro título do mesmo autor chama minha atenção. Verifico o índice. Há uma parte que captura o meu olhar: A inquietação das palavras. Leio esse trecho com sede, na própria livraria. Eis o que buscava, eis o alimento para o meu atual desejo. Esse ganha corpo: as palavras do sábio psicanalista o nutrem. Decido escrever um texto que simplesmente dê outra entonação à voz de Pontalis. Um novo ritmo que possa iluminar o movimento feito pelo brilhante psicanalista.


Escrever aqui significa, portanto, criar um novo idioma para a perspectiva que foi encontrada em Pontalis (1991). Não porque lhe falte algo, porque eu queira completar alguma insuficiência, mas porque uma das funções da escrita é dar um sopro de vida ao tempo que se esgotou nas palavras de um texto. Tendo como disparador os rumos seguidos por Pontalis (1991), queria destacar algumas questões que foram levantadas por ele e tentar respondê-las a partir de seu próprio texto e de outros. O que leva o psicanalista ao gesto de escrever? O que o move? O que o desperta para essa atividade? O que o impulsiona para esse ato? Teria o movimento de escrita do psicanalista relação com o movimento do poeta ou do escritor de romance, por exemplo? Ou estaria o psicanalista apenas preocupado com a transmissão científica daquilo que descobriu em sua prática? Em outras palavras: o psicanalista estaria interessado apenas na documentação de dados clínicos ou outro motivo o impele em direção ao ato de escrever?


Para responder a essas perguntas teremos de compreender o que é a escrita — ainda que sem a pretensão de esgotar o que dela se possa pensar ou dizer — e, mais especificamente, como ela pode ser pensada no campo da psicanálise.


Em primeiro lugar é importante lembrar o valor que a palavra assume na atividade psicanalítica. A palavra é, por excelência, o instrumento da psicanálise. Esta trata de um universo tenebroso, obscuro, inexplorado, que se manifesta nas pulsões, no gozo aprisionante, nos tormentos difusos da alma ou na loucura violenta. O poder da palavra está em iluminar e dar outras tonalidades a esse universo que antes permanecia inerte nos escombros de um porão. Segundo Freud (apud Pontalis, 1991, p.114), a palavra, ao ser proferida no escuro, tem o poder de espantar o medo da criança, pois, por meio de sua sonoridade, tudo se torna claro. Essa idéia, que tem uma conotação bem iluminista, estendia-se ao vasto terreno da psicanálise freudiana até a linguagem assumir o seu império no território psicanalítico contemporâneo com a fórmula de Lacan (1966/1998) “o inconsciente estrutura-se como linguagem”. Pontalis (1991) enfatiza a força da linguagem ao afirmar que “há fundamento, na teoria, para tal confiança [...] na linguagem, em sua extensão, em seus poderes que se diriam mágicos. As palavras eram ‘magia na origem’, lembrava Freud, e a análise é uma ‘magia lenta’”. (Pontalis, 1991, p.116)


As palavras ocupam um papel bastante claro na clínica, seja nas interpretações, seja nas associações feitas por um paciente. Mas não só. A polissemia de escritos psicanalíticos, que se apresenta desde os tempos de Freud, prova que a palavra ocupa o centro de todos os espaços conquistados pela psicanálise. Freud jamais desvinculou a atividade psicanalítica da escrita. Pela primeira vez, o ato de escrever alude diretamente a uma relação com o inconsciente. Os vultos inconscientes emergem no momento em que alguém os vasculha com palavras proferidas ou escritas. E o trabalho do psicanalista é justamente encontrar contornos para as sombras espalhadas e disformes que habitam a alma. Nesse sentido, seu ofício é ser um “paciente escritor do apagado”, “um incansável pesquisador dos vestígios da ausência” (Pontalis, 1991, p.119), restando-lhe como recurso unicamente as artimanhas das palavras, sejam elas escritas ou emitidas oralmente.


A escrita, por conseguinte, não se caracteriza como uma atividade extra da qual o analista se ocupa por mero capricho de sua vaidade. Não é uma atividade paralela e acessória ao trabalho prático-clínico. Ao falar do lugar que ocupa a escrita para Freud, Pontalis (1991) esclarece essa idéia:


Primeiro, e que me perdoem esta evidência, não nos faltariam certamente taumaturgos nem carpinteiros da alma, mas [sem a escrita elaborada por Freud] não haveria psicanalistas: Freud, [...] nunca dissociou a escrita de sua prática, [...] nunca deixou de encaixar uma na outra [...] (Pontalis, 1991, p. 125)


Ainda que um psicanalista priorize o exercício prático-clínico, a escrita ocupa uma função primordial na sua atividade. Pontalis (1991) elucida mais uma vez com precisão esse aspecto:


Depois, escrever, mesmo para aquele que quer apenas ser prático, começa com as palavras que se imprimem na sua cabeça e voltam bem mais tarde, quando ele as acreditava perdidas; é algo que se deposita em desordem nas poucas notas lançadas numa folha depois de uma sessão; é algo que se faz à noite, nas páginas de um caderno que nunca será mostrado a ninguém, como se com isso quisesse menos pôr ordem nos pensamentos do que precaver-se contra um risco de invasão, retomar-se, reconquistar uma identidade atacada, tentar restaurar uma unidade por demais ameaçada. (Pontalis, 1991, p. 125)


Entretanto, é preciso sublinhar que escrever, nesse caso, não se confunde com a representação de alguma coisa real. A palavra não é a captura de uma imagem que surge em sua aparência verdadeira diante de nós. “A linguagem é perda” e nunca será “acesso imediato à coisa” (Pontalis, 1991, p.120). Ela inevitavelmente “está de luto”, pois algo sempre se perde em meio ao que é evocado ou esboçado em algumas linhas. Seria um engano, no entanto, pensar que a linguagem inacabada é uma falha de um pensamento, é a representação equivocada de uma coisa dada. As fissuras da linguagem, suas lacunas, em suma, o seu inacabamento é o que a anima, pois, como elucida Merleau-Ponty:


A linguagem exprime tanto pelo que está entre as palavras quanto pelas próprias palavras, tanto pelo que não diz quanto pelo que diz, assim como o pintor pinta tanto pelo que traça quanto pelos espaços em branco que dispõe ou pelos traços de pincel que não efetuou. (Merleau-Ponty, 1969/2002, p.67)


O caráter provisório das palavras aponta para o que não é, para a não presença, para a dobra, o desvio que justamente conferem vida ao presente, ao que é, ao que aparece concretamente. A linguagem respira justamente porque é porosa, e as palavras não retratam um módulo compacto, que só poderia indicar um sentido único e absolutamente verdadeiro. Elas tateiam com a intenção de significar, ensaiam seu bailado, improvisam uma dança e, arriscando-se em curvas descontínuas, que não pretendem aprisionar ou capturar elementos passageiros, acabam dando forma ao devir. É desse modo que para Pontalis “a palavra na análise e a escrita são parentes, pois fazem da perda uma ausência” (1991, p.120), tornando presentes a depressão e a excitação simultâneas. Por isso, é preciso que sejamos sensíveis aos “fios de silêncio com que é tramado o tecido da fala” (Merleau-Ponty, 1969/2002, p.69) ou da escrita. O paradoxo tanto da escrita como da fala revela-se, portanto, na soberania da palavra e na sua concomitante impotência. Pontalis expressa essa idéia, focando-se na escrita: “o paradoxo da escrita é que ela não cessa de fortificar o império dos signos para, no mesmo movimento, recusar-lhe a tirania” (1991, p.121). Assim, o ato de amarrar algumas palavras num texto tem apenas a capacidade de indicar um sentido oblíquo ao que se deseja dizer. Escrever define-se, então, como desejo de


dar forma ao informe, alguma permanência ao mutável, uma vida – tão frágil, como se sabe – ao inanimado. O que o autor e o leitor esperam então obter não é, como no caso do escrito científico, uma verdade conclusiva, nem mesmo um fragmento único de verdade, mas a ilusão de um começo sem fim. Promessa de uma análise “bem-sucedida”, como um livro “realizado”: o futuro do passado. Wo es war… Enquanto houver livros, ninguém – nunca – terá a última palavra. (Pontalis, 1991, p.134)


Esse ofício que tem uma relação intrínseca com a oralidade – nas análises, nas supervisões ou mesmo em seminários – e sobretudo com a voz que reverbera “sobre o fundo de silêncio e ruído, às vezes do furor dos movimentos pulsionais” (Pontalis, 1991, p.122-3) mostra algumas de suas facetas no corpo de um texto a tal ponto que Pontalis insiste em interrogar por que razão o psicanalista deixa a poltrona instalada atrás do divã e dirige-se à escrivaninha. Essa questão assim formulada coloca-se mais propriamente nos seguintes termos: o que explica que o psicanalista, cuja prática repousa sobre o que se localiza no âmbito privado, busque, por intermédio da escrita, uma legitimidade do que faz no âmbito público? A resposta traçada por Pontalis ilumina aspectos essenciais do trabalho psicanalítico. Para ele, escrever significa constituir e atribuir a si mesmo um nome próprio, pois o efeito da transferência confere ao psicanalista nomes que não vestem o seu corpo. Ele deixa-se desfazer e refazer por um outro, moldura-se e ganha a forma do desejo de outrem. Assim, escrever para o psicanalista é “um meio privilegiado de deixar de ser um ghost-writer, de ver-se reconhecido” (Pontalis, 1991, p.124) na sua fisionomia própria.


Mas a pergunta: “o que impulsiona o psicanalista em direção ao gesto de escrever?” ainda não foi devidamente respondida. Para abarcá-la seria preciso questionar também se a suposta preocupação com a transmissão científica, que sabemos existir em determinados campos do saber, apresenta-se do mesmo modo na psicanálise. É claro que não podemos ignorar a importância de certos manuais ou textos teóricos-elucidativos. No entanto, o que observamos, no caso da psicanálise, é que se os tratamentos progridem a contento, favorecendo associações e elaborações, ou se eles confirmam nossas teorias, a escrita torna-se absolutamente desnecessária. Ao contrário, se um vácuo ocupa o lugar do sentido que poderia ser encontrado, ou se um excesso de conteúdos transborda para além de nossa possibilidade de pensamento, é necessário encontrar um “outro recipiente” (Pontalis, 1991, p.127). Recorrer a outro receptáculo, no entanto, não significa fazer uma simples passagem de um universo confuso a outro subitamente pleno de significações precisas e claras. A escrita arrisca alguns esboços a partir daquilo que corrói e faz ruir, restaurando significações que antes pareciam simplesmente perdidas ou inexistentes. É possível afirmar que a escrita, em seu estado nascente e vivo, é um gesto feito pelo psicanalista no sentido de recuperar a unidade do seu ser por avatares. Após haver-se emprestado aos efeitos dissolventes da transferência, o psicanalista reintegra-se ao transfigurar-se pela escrita. Pontalis esclarece uma das razões pelas quais o psicanalista é levado a percorrer os descaminhos da escrita:


O que leva o psicanalista a escrever não é certamente da mesma natureza do que aquilo que o autoriza a dizê-lo. Talvez a paixão de escrever resulte às vezes da incapacidade de dizer e até de pensar. Talvez só se escreva a partir de uma afasia secreta, para superá-la, tanto quanto para manifestá-la. (Pontalis, 1991, p.127)


E nesse sentido é que podemos retomar o caráter orgânico da escrita, pois esta se revela acima de tudo como uma permanente transformação. Esboço alguns traços, algumas letras, concateno algumas palavras e já não sou o dono delas. Contribuo com modestas divagações, idéias imprecisas e já não controlo mais o gesto inicial tão amador e apreensivo. Pensamentos flamejam e sou arrastado por um fogo que derrama palavras no papel. A escrita reluz com esse frêmito justamente por tratar do que desconheço. Por meio dos meus recursos é um outro que fala em mim e me transforma até que eu tenha novos órgãos.


Assim, o discurso tem sua autonomia e impõe-se ao escritor, interpela-o e suas ressonâncias o envolvem por completo, tomam-no, habitam-no e proliferam-se numa ação que se chama escrever. Então ele já não sabe o que é seu e o que pertence à própria autonomia e vivacidade daquela textura discursiva. Quando alguém escreve é um outro que nele se manifesta e o metamorfoseia, concentrando-o simultaneamente numa unidade não-estática. Tal unidade revela-se em movimento, em ação, sendo. E o que move esse gesto de escrever é o desejo de posse das coisas perdidas, soterradas ou imprecisas por meio da linguagem. Entretanto, o que é obtido em cada traço, em cada escolha de uma palavra é a sensação de que o desejo de captura jamais poderá ser plenamente satisfeito. No entretempo da escrita a intenção de aprisionar o que escapa enfraquece à medida que as palavras ganham forma. Assim, para que o desejo de deter o fluxo contínuo das coisas “se realize, é preciso que ele não se realize por completo e, para que uma coisa seja dita, é preciso que ela jamais seja dita absolutamente”1. (Merleau-Ponty, 1969/2002, p.59)


Em certo sentido, escrever aproxima-se do processo analítico. Este só pode ser vivido de forma visceral, assim como a escrita, que de modo algum se distancia do corpo que a imprime. A seiva que alimenta a escrita psicanalítica e o processo analítico tem a mesma matriz orgânica. Os rastros do inconsciente e as marcas corpóreas cravadas pelos caminhos pulsionais percorridos num trabalho de análise inscrevem uma sintaxe psíquica que se revela sempre de forma desconcertante e imprevisível numa nova sessão. O mesmo se dá com a escrita: a estrutura da língua está fincada no nosso ser, mas o ato de escrever surpreende e inova-se infinitamente. A escrita em sua tessitura, a interpretação ou o desenrolar da associação livre são a um só tempo presença do ser e o seu devir. Assim como aquele que escreve se espanta com o outro que exala das palavras que vão pouco a pouco se inscrevendo no papel, o sujeito que se aventura no trabalho analítico descobre o que é psicanálise somente ao mergulhar efetivamente nesse longo processo, desvendando-se, surpreendendo-se, criando-se. Dito de outro modo: da mesma forma que a escrita é orgânica e viva, a análise não perpassa um circuito meramente mental, ela se faz pelas entranhas, e é de cada experiência que emerge um apelo para que esta seja expressa.


O analista, por sua vez, ainda que experiente, nunca se encontra encerrado, experimentando-se improvisadamente a cada gesto. E a escrita pode ocupar, para ele, o lugar da supervisão nos primórdios de sua formação. O supervisor era, então, um terceiro que assegurava ao jovem analista que ele não era “apenas presa de sua própria fantasística”, mas deveria “simultaneamente ‘divagar’ [...] e dar aos seus pensamentos mais estranhos uma forma bastante consistente para que o outro [...] [pudesse] perceber-lhes os contornos e julgar-lhes a validade” (Pontalis, 1991, p.124-5). Logo, o escrito psicanalítico não pode ser considerado um mero relato linear dos resultados de algum processo transferencial vivido. A escrita em psicanálise não é o simples efeito derivado da transferência. Ela é, isso sim, uma transformação análoga e tão corpórea quanto o é o processo analítico.

Mas então qual seria a distinção entre a palavra proferida oralmente, no divã, por exemplo, e aquela que é impressa no papel?


Mas sempre ficará uma diferença maior: a palavra autorizada pelo divã, [...] nunca será obra; ela só é eficaz com a condição de aceitar perder-se, enquanto que todo escritor [...] sabe que deve estar constantemente atento à escolha das palavras certas, à sua sonoridade, ao movimento da frase, ao ritmo, à forma que pouco a pouco o seu livro vai tomando. (Pontalis, 1991, p.130)


A palavra justa, que se busca na escrita, não se refere à coisa como se fosse uma roupagem que captura o movimento do real. A palavra remete à coisa fazendo-a existir. E esse poder, inerente à escrita, evoca o existente e transforma-o, não se diferindo no romancista, no poeta, no escritor de ficção ou no psicanalista. Pontalis expressa a semelhança:


Há uma diferença essencial entre o escrito psicanalítico e o escrito dito de ficção? Não estou convencido. Se me limito ao meu próprio “caso”, é com o mesmo estilo, bebendo nas mesmas fontes esquecidas, com uma semelhante disposição de espírito e com o mesmo prazer de me deixar seduzir pela força de atração da língua, que vieram L’Amour des commencements e Perdre de vue. A ambição e seu fracasso são os mesmos: confiar no fraco poder de encarnação das palavras, na sua “magia lenta” e desconfiar de sua arrogância, tentar fazê-las suas, achar nelas um abrigo, alojar nelas a incerteza que às vezes permite achar, mais do que a palavra exata, o nome próprio, aquele que tem uma chance de nomear, e não de prender, o estranho. (Pontalis, 1991, p.133)


A aproximação da escrita no campo psicanalítico do trabalho de um escritor de ficção, romancista ou até mesmo de um poeta remete à tese defendida por Birman (1995) no texto Sujeito e estilo em psicanálise: sobre o indeterminismo da pulsão no discurso freudiano, segundo a qual a psicanálise visa a produção de um estilo. Não é o caso aqui de apresentar todas as provas dadas pelo autor para sustentar tal tese, mas queremos apenas elucidar alguns aspectos ali presentes que aproximam a psicanálise da arte.


É interessante antes lembrar que, para Lacan, o psicanalista é formado por sua análise. Isto significa dizer que, ao término de uma análise, o paciente torna-se, ele mesmo, um analista. Mas a pergunta que decorre dessa afirmação é: o que é ser formado psicanalista? Tal questão é justamente respondida por Birman no artigo acima mencionado. Nele o autor sustenta a polêmica idéia de que a experiência psicanalítica possibilita ao sujeito a produção de um estilo para a sua existência, contrariando desse modo a consagrada tese de que a psicanálise estaria relacionada à cura. O autor considera o estilo não como um “acréscimo secundário e de superfície na forma de ser do sujeito” (Birman, 1992, p.26), mas propõe, diferentemente, que o ser e a sua forma de ser, ou melhor dizendo, que o ser e o seu estilo não estão desvinculados. Assim, o que caracteriza fundamentalmente o ser é a sua particularidade, único meio através do qual o sujeito pode se expressar. Somente a singularidade do sujeito é que permite a manifestação de um universal. Nas palavras de Birman: “[...] o sujeito é um universal concreto, onde o seu ser se funda nas marcas singulares que o sustentam e que se revelam imediatamente no seu estilo de existência”. (Birman, 1992, p.27)


As considerações acerca do estilo feitas até aqui apontam para caminhos que nos conduzem ao problema da escrita no âmbito da psicanálise. Pois se, como vimos, um psicanalista é formado a partir de seu processo pessoal de análise e este significa conquistar um estilo para a própria existência, podemos afirmar, por conseqüência, que um psicanalista só é um psicanalista na medida em que, como o artista, desenvolve um modo próprio e original de exercer o seu ofício.


Exprimir o ser em sua singularidade implica em reconhecimento público, já que a diferença expressa como acento único ou variação só se revela no contraste com um sistema de códigos já existente em determinada comunidade. Se o psicanalista restringe-se à prática clínica, esquivando-se do encontro com seus pares, ele abdica da possibilidade de ser enquanto psicanalista, pois isso se dá somente quando traços originais são expressos diante de semelhantes que os legitimem. Retomo mais uma vez os termos de Birman que reafirmam a relação entre estilo e reconhecimento:


[...] dizer de alguém e de uma obra que é portadora de um estilo é um elogio, pois é enunciar e reconhecer que esse personagem e essa obra se diferenciam, não se confundindo absolutamente com os seus similares. Assim, a categoria de estilo reenvia à idéia de singularidade do sujeito. (Birman, 1992, p.28)


O estilo é conquistado como uma voz própria que deixa um rastro, tornando possível para aquele sujeito toda a significação que dá forma à experiência. Num momento fecundo “um sentido que era apenas operante ou latente [...] [encontra] emblemas” que o liberam e o tornam “manejável para o artista – [ou, aqui, para o psicanalista] – e acessível aos outros” (Merleau-Ponty, 1969/2002, p.84-5). Nesse sentido, o estilo vincula-se intimamente à noção de autoria que, por sua vez, se refere ao aval dado por uma comunidade àquilo que se revela singular e original no sujeito. Birman expressa muito bem essa idéia:

A problemática do estilo implica as idéias de autoria e de singularidade diferencial. Neste contexto, enunciar que a experiência psicanalítica pretende empreender a produção de um estilo para a existência do sujeito, implica dizer que a psicanálise é uma modalidade de saber que pretende reconhecer a singularidade do sujeito, sendo essa a sua finalidade fundamental. (Birman, 1992, p.28)


Vale lembrar que, sendo “a categoria de estilo [..] originária das teorias da literatura e da arte” (Birman, 1992, p.27), tanto estas como a psicanálise fundamentam-se no valor diferencial que demarca uma determinada escola face a outras ou um autor frente aos demais que pertencem ao mesmo contexto histórico. Não seria, portanto, um exagero dizer que um psicanalista só está formado como tal ao expressar seu estilo. Este, por sua vez, tem na escrita um instrumento privilegiado, pois, como vimos com Pontalis, ela é o único meio que exige do psicanalista uma preocupação com a escolha precisa das palavras, com a sonoridade, com o movimento das frases, com o ritmo que toma o seu texto, demarcando uma forma e afirmando o ser a cada traço escolhido. O sentido de um texto exige essa palavra ou tal pontuação de preferência a qualquer outra, arranjando combinações que exprimem a forma de uma existência circunscrita em determinados acontecimentos. Um trabalho que opera somente com o teor fugaz das palavras, encontra na escrita uma forma extremamente elevada de inscrever traços singulares sobre um mundo de fantasmas, sonhos, recalques, pulsões cotidianamente atravessado.


Referência

Birman, J. (1995). Sujeito e estilo em psicanálise: sobre o indeterminismo da pulsão no discurso freudiano. In A. H. de Moura, As pulsões (pp.33-51). São Paulo: Editora Escuta

Campos, H. (2004). Galáxias São Paulo: Editora 34

Kant, E. (2006). Antropologia de um ponto de vista pragmático. São Paulo: Iluminuras

Lacan, J. (1998) “Posição do inconsciente” (no Congresso de Boneval). In: J. Lacan, Escritos (pp.843-864). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor

Lispector, C. (1998). Água viva. Rio de Janeiro: Rocco

Merleau-Ponty, M. (2002). “Prefácio”. In: M. Merleau-Ponty apud C. Lefort, A prosa do mundo (pp.7-17). São Paulo: Cosac e Naify

____________ (2002). “A linguagem indireta”. In: M. Merleau-Ponty, A prosa do mundo (pp.73-143). São Paulo: Cosac e Naify

_____________(2002). “A ciência e a experiência da expressão”. In: M. Merleau-Ponty, A prosa do mundo (pp.29-69). São Paulo: Cosac e Naify

Pontalis, J.-B. (1991). “A inquietação das palavras”. In J.-B. Pontalis, A força de atração (pp.113-134). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor

Proust, M. (2001). Em busca do tempo perdido São Paulo: Globo

O gesto da escrita na psicanálise. Trieb (Rio de Janeiro) , v. VI, p. 355-366, 2007.

Parente, A. A. M.


Comments


bottom of page